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[CAIXA DE PANDORA] Traumas Vinculares: a dor silenciosa

Imagem: Pixabay

| Por Juliana Florencio* |

Sabemos, desde Freud, a importância das primeiras experiências da infância para um desenvolvimento saudável. Hoje temos visto como a obra de D. W. Winnicott e de J. Bowlby – estudiosos que se dedicaram à pesquisa sobre a relação entre bebês e seus cuidadores – tem ajudado para a compreensão deste processo e embasado algumas abordagens terapêuticas.

Gostaria neste texto de falar sobre um certo tipo de trauma que é diferente do que geralmente é abordado. Quando falamos de trauma fazemos uma associação com um acontecimento trágico que causa enorme sofrimento físico e/ou psicológico como, por exemplo, ser vítima de um sequestro, uma violência sexual, uma catástrofe natural ou presenciar um ato violento. Essas experiências ultrapassam o limite do suportável e deixam consequências em quem as viveu.

Nos exemplos descritos acima, conseguimos reconhecer a experiência desencadeadora de uma Reação Aguda ao Stress (popularmente chamado de “estado de choque”) ou um Transtorno de Estresse Pós-Traumático, por exemplo. Mas existe outro tipo de experiência traumática que é bem mais difícil de identificar, embora tenha também amplas, profundas e duradouras consequências. São os traumas de vínculo, também chamados de traumas de desenvolvimento, que são causados por negligência nos cuidados com a criança e por sistemática violência psicológica e/ou física.

Muitos desses maus tratos são difíceis de serem comprovados, porque muitas vezes não se trata de surras ou castigos. Eles acontecem no âmbito familiar, escapando a um “controle social”. A criança se vê sem saída, pois é maltratada por quem deveria cuidar dela.

Falta de atenção, falta de cuidado, indiferença, deslegitimação, falta de demonstração de afetuosidade, ausências por longos períodos de tempo, repulsa, falta de incentivo, palavras e atitudes desmotivadoras, críticas destrutivas, palavras e atitudes que ferem a dignidade da criança, palavras e atitudes vexatórias, ridicularização, estigmatização, sentenças e acusações como “você não presta”, “você é um peso”, “você só me traz vergonha/dor de cabeça/arrependimento/problemas”, “você não vai dar pra nada”, “ninguém gosta de você”, são um exemplo desse tipo de violência.

A criança não é vista em sua individualidade, não é respeitada, não é ouvida. Sua vontade, suas necessidades, seus desejos, seus medos não podem ser expressos, pois são imediatamente rechaçados, ridicularizados, punidos ou simplesmente ignorados.

Ela pode ser tratada com frieza, ser deixada sozinha, ou, também, ser alvo frequente de acessos de raiva de um ou mais cuidadores.

Vale salientar que, nos casos de traumas de vínculo, essas negligências e violências são constantes na vida da criança, não se trata de ações isoladas.

Para sobreviver, ela precisa se adaptar a conviver com as agressões, ausências, omissões e indiferença. Essa adaptação que, em determinada etapa da vida, foi a saída encontrada para a sobrevivência, se cristaliza, tornando-se um padrão que se será levado para a vida adulta.

Outra consequência importante refere-se à auto-imagem. A criança, e depois o adulto, percebe-se como inferior e “defeituoso”, tendo dificuldade de perceber suas qualidades, potenciais e auto valor.

Essa percepção pessimista estende-se para a vida de uma forma mais ampla. As situações do dia-a-dia e o mundo, de uma forma geral, passam a ser vistos como hostis. Espera-se sempre que o pior aconteça. A esperança de que coisas boas possam ocorrer torna-se um horizonte distante. Boas oportunidades são percebidas com grande desconfiança e são fonte de ansiedade, pois o medo de se decepcionar é intenso.

Não é difícil entender tais medos e ações evitativas quando olhamos para uma pessoa com histórico de negligência ou violência na infância. O universo da criança é a família, ela não tem outro grupo a quem recorrer. Na maioria dos casos, pedidos de socorro ou queixas não podem sequer serem formulados, ou porque a criança é muito pequena, ou porque ela não entende que outra possibilidade de vida seja possível. Se a família foi fonte de insegurança e constante mal estar, não é difícil entender porque o adolescente, e depois o adulto, levam essas impressões de sofrimento para a vida.

Por isso, nestes casos, existe uma maior probabilidade de re-traumatização e de envolvimento em relacionamentos violentos ou abusivos. O modelo de relacionamento conhecido é o de maus tratos. Além disso, por causa de um auto conceito distorcido, a pessoa entende, inconscientemente, que merece ser mal tratada, que não existe outra forma viável de relacionamento para ela e que, portanto, ela não tem outra saída – assim como não teve na infância.

Essas pessoas chegam aos consultórios com as mais variadas queixas e diagnósticos. Transtornos de ansiedade, depressão, transtornos psicossomáticos, transtornos dissociativos, relacionamentos destrutivos, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, transtornos do sono etc. Existem estudos que correlacionam o Transtorno Borderline com Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo (TEPT-C), categoria esta que abrange, entre outras experiências traumatizantes prolongadas, maus tratos na infância.

A partir da pesquisa e do engajamento de vários profissionais da saúde, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo foi incorporado ao CID 11 (Classificação Internacional de Doenças). Esse transtorno não foi incorporado ao DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais) por questões políticas e de mercado.

A concepção de que as experiências do início da vida podem estar na base de uma série de transtornos mentais traz a necessidade de uma proposta terapêutica abrangente que ultrapasse o foco no tratamento de sintomas e que inclua a prevenção.

A medicação apropriada pode ser importante nesses casos, pois o corpo “se acostumou” a estar em um estado permanente de alerta, esperando sempre pelo pior dos cenários. Nesse caso, a medicação entraria para que o corpo entendesse que não está mais sob ameaça.

Grande parte dos pacientes chegam aos consultórios com vários diagnósticos baseados apenas nos sintomas, mas poderíamos dizer que essa é a “ponta do Iceberg”, pois a história de vida não foi levada em consideração.

Uma das principais consequências dos traumas vinculares é a Dissociação que pode apresentar-se como uma dificuldade de estar no “aqui e agora”, uma espécie de alienação, um entorpecimento, que em alguns casos é sentido diretamente no corpo, como anestesia. A Dissociação pode ser expressa como “não estar no corpo”, não senti-lo, ou estar flutuando. Podem acontecer também problemas de atenção, memória, amnésias e o não reconhecimento das próprias emoções e necessidades.

A Dissociação é resultado de uma estratégia que a criança inconscientemente desenvolve para sobreviver em um ambiente hostil e de sucessivos maus tratos. É uma forma de “não estar presente” para se proteger.

Por isso, uma parte fundamental no tratamento de traumas vinculares é o trabalho com o corpo. Isso acontece através de, por exemplo, exercícios físicos, ioga, contato com a natureza, exercícios de atenção plena, respiração, dança, artes marciais, massagens etc. Existem várias modalidades possíveis para “re-ligar” o próprio corpo.

Outro efeito desses traumas são as somatizações. O que não pode ser dito, o que não pode ser sentido, manifesta-se no corpo através de dores e doenças psicossomáticas.

Um ponto fundamental no tratamento dos traumas vinculares é o acompanhamento psicológico. Afinal, esse tipo de trauma é um trauma de relacionamento. O vínculo entre paciente e terapeuta constitui-se como uma possibilidade de vivência segura, saudável, baseada em respeito e confiança.

O tratamento psicoterapêutico requer paciência, tempo e perseverança, pois estamos lidando com padrões, percepções, crenças e comportamentos de uma vida toda.

Na minha prática clínica percebo o valor do vínculo terapêutico como propulsor de transformações, assim como de métodos que trabalhem o potencial criativo e de reconexão com o corpo, como a Arteterapia e a Terapia do Jogo de Areia. Esses métodos ativam o poder de auto cura e revelam ao paciente seu potencial criador, devolvendo-lhes autonomia e poder de ação sobre a própria vida. O acompanhamento psicológico trabalha, também, para que o paciente se perceba de uma forma mais amorosa e, a partir disso, construa relacionamentos saudáveis e afetuosos, com outras pessoas e com a vida.

Referências bibliográficas:

KOLK, V .d. B. O Corpo Guarda as Marcas. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
KALSCHED, D. O mundo Interior do Trauma. São Paulo: Paulus, 2013.
REDDEMANN, L., WÖLLER, W. Komplexe Porttraumatische Belastungsstörung. Göttingen: Hogrefe, 2019.

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
E-mail: juflorenciocs@gmail.com

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