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[CAIXA DE PANDORA] Imagens da depressão

Arte: Juliana Florencio

| Por Juliana Florencio* |

Com a chegada do Setembro Amarelo gostaria de falar sobre a depressão a partir de imagens.

Quero começar com esta imagem que Leader conta na introdução de seu livro “Além da Depressão”:

“Após receber uma receita médica de um dos antidepressivos mais populares e comprá-lo na farmácia, a jovem volta para casa e abre o pacotinho. Imaginara um frasco amarelado, repleto de cápsulas firmemente embaladas, como comprimidos de vitamina. Em vez disso, encontrou uma embalagem metálica plana, com comprimidos separados uns dos outros por um espaço desproporcional de papel alumínio vazio. “Cada comprimido encontra-se em total solidão” – disse – “em conchas metálicas olhando umas para as outras. Cada um em suas pequenas prisões individuais. Por que não estão todos juntos em uma caixa, livres e soltos?” A forma como os comprimidos foram empacotados perturbou-a. “Eles estão alinhados como soldadinhos obedientes – por que pelo menos um deles não se rebela?”. Sua próxima ideia foi engolir todos os comprimidos de uma vez. Quando indaguei sobre o porquê, disse: “Para que não se sintam tão sozinhos e claustrofóbicos.” “(LEADER, 2011)

Essa imagem amplifica nossos sentidos para a temática e fala por si só. A situação dos comprimidos, semelhante à nossa condição frente à fragilização dos vínculos afetivos e sociais, nos remonta à depressão como reação.

Podemos pensar na depressão, também, como efeito colateral de um sistema voltado para a produção e desempenho, no qual fatores promovedores de Eros (aspectos criativos e vinculares) seriam menosprezados por não serem lucrativos ou não fazerem sentido numa lógica de produtividade.

A dissociação é outra nuance que a imagem da separação dos comprimidos pode nos trazer. Dissociação como não-vivência de partes nossas que foram reprimidas ou que não puderam se desenvolver. Isso também tem um custo energético – o que era pra ser e não é, o que não flui, o que está estagnado, semi-morto. Poderia, também, implicar numa experiência de luto difusa por esses potenciais não vividos.

Como estamos inseridos num determinado modus operandi, o adoecimento psíquico é explicado e tratado de forma que o indivíduo retome ao seu estado produtivo e consumidor.

O que temos visto majoritariamente é um reducionismo do sofrimento humano a diagnósticos e medicalização. A dor é calada novamente. A reação é aprisionada num discurso médico.

É importante aqui salientar, principalmente nestes tempos de extremismos e simplificações, que considero fundamental a pesquisa e a terapêutica com medicações específicas. O que pretendo com este texto é discutir a profundidade e as múltiplas facetas de um adoecimento psíquico.

Outra questão importante que Leader aborda é a falta de espaços coletivos para vivenciar os lutos, a dor da falta. Há não muito tempo, o luto era vivido coletivamente, as pessoas realizavam rituais sociais durante este processo. Leader, diferentemente de Freud, afirma que “o luto exige outras pessoas”.

A partir da imagem dos comprimidos, trazida por Leader, me chega outra: a da oxidação.

Se os comprimidos fossem guardados juntos certamente amarelariam a partir do momento em que o pote fosse aberto, pois sofreriam a ação do ar.

Estar junto e sob a influência do ar mudaria o estado original – “ideal” – dos comprimidos. E essa mudança pode ser considerada como um dano.

Esse é um grande paradoxo do estar vivo. Ao respirarmos, oxidamos. Somos transformados pelo oxigênio, envelhecemos e morremos. Mas a condição de estar vivo é respirar!

Um dos momentos mais tensos e cruciais da nossa existência é se ao nascermos respiraremos ou não. O choro inicial, nossa estreia no mundo, é esperado com ansiedade. Quando o recém-nascido chora, inaugurando com dor os pulmõezinhos, é motivo de alívio e grande alegria.

“De acordo com o Physiologus (o folclore tradicional de psicologia animal), os filhotes de leão são natimortos. Devem ser acordados para a vida com um rugido. É por isso que o leão tem aquele rugido, para despertar os leõezinhos do sono, pois eles dormem em nosso coração.” (HILLMAN, 2010)

“Empacotados e isolados não oxidamos, não somos afetados, mas, também, não nos relacionamos, muitas vezes nem com nós mesmos. Estaríamos vivos? Ou esperando o rugido de um leão para nos acordar?”

Ao entrarmos em contato com o outro – e as partes de nós mesmos, das quais estamos separados – a alquimia ocorre, perdemos nosso estado imaculado, somos transformados, modificados pelas experiências, vivemos.

Podemos olhar os estados depressivos de forma ampliada. Biologização e medicalização reduzem essa experiência e privam o humano de sua complexidade.

A depressão, como reação a um modo de vida entorpecedor, tem sido deslegitimada e amordaçada, impedindo que transformações necessárias aconteçam.

O humano é calado e colocado em caixas de comprimidos, separados uns dos outros, de si mesmo.

Podemos considerar a depressão como um grito mudo da alma, um grito para dentro, talvez um grito que não queira incomodar, mas que, provavelmente, o maior desejo é poder ser ouvido… pelo outro e por si mesmo também.

Um grito que informa que o leão está adoecido ou dorme como enfeitiçado. Nosso leão talvez tenha desaprendido a rugir. Um leão que desaprendeu a gritar seus desejos, necessidades, suas inquietações, seus estranhamentos, sua beleza, sua dor, sua potência.

Tentei escrever este texto a partir de imagens. As imagens falam por si só e guardam potência em si mesmas. São catalisadoras e potencializadoras de mudança. Sua aparição é germe e transformação em si. Ao deixar que as imagens fluam na abordagem da depressão podemos acolher a complexidade do humano e da vida.

Referências bibliográficas:
HILLMAN. J. O pensamento do coração e a alma do mundo. São Paulo: Verus, 2010.
LEADER. D. Além da Depressão. Rio de Janeiro: BestSeller, 2011.

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
Email: juflorenciocs@gmail.com

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