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‘Tempo, fecundidade e o ser espiritual’, por Carolina Cosentino

'Nada importa muito se não se trata de descobrir em nós o absoluto.'
Meister Eckhart

O deus da mitologia grega Chronos, semelhante ao substantivo concreto ‘tempo’ conforme o conhecemos, imediatamente aos conceber, engendra a trajetória de morte de seus filhos – assim que gerados, os devora. O deus retira o homem do mundo natural de simbiose inconsciente com o todo para dar início a um processo de desenvolvimento humano que, para nosso interesse, destaca-se o viés do processo de expansão da consciência. Chronos castra seu pai Ouranos, deus primordial também conhecido como Urano, o Céu, de potência criativa exaltada; estanca desta forma uma fonte de vida para tornar-se ele mesmo uma nova fonte de criação a partir do casamento e fecundação de sua irmã, Reia.

O deus Tempo utiliza a foice: corta, divide. Separa o céu da terra a fim de que esta seja trabalhada, cultivada, semeada. Representa o limite e a estrutura necessários ao alcance de nossa realização. Chronos é o herói civilizador, o que ensina a cultura da terra. Surge quando a humanidade deixa de ser nômade, fixando-se e criando os círculos sociais de convivência e trabalho compartilhado; quando passa a agir sobre a natureza arando a terra, intencionalmente plantando a semente, tratando para que germine, realizando a poda, a rega e planejando para que as condições do próprio ciclo façam a sua parte.

A evolução deste mito desde o surgimento das trevas até o estabelecimento de uma nova ordem no Universo tendo por soberano o pai das luzes Zeus conta da sequencia de elaboração da psique, da origem e desenvolvimento da consciência. Neste sentido, conceitualmente parte-se igualmente do Caos, massa informe e confusa, atravessando estágios de fixidez e cristalização, analogamente ao reinado de Chronos, quando a consciência ainda está em decurso e necessita efetivamente se defender, enrijecer, com o intuito de sobreviver às intempéries e provocações de ruptura próprios da jornada. Fixando-se no tempo devido, a individualidade se fortalece no direito à existência e torna possível o alcance do estágio mais avançado onde o poder, enquanto capacidade realizadora, e a flexibilidade podem coexistir.

Destaca-se em nossa análise a necessidade arquetípica humana de que se reúnam forças a fim de realizar os cortes necessários ao processo de individuação. Observar na vida cotidiana o que precisa ser estancado, separado e lavrado, consoante ilustra o mito, para que perseguindo as dimensões da alteridade uma posição mais elevada de ação e compreensão venha a ser integrada alcançando-se assim um maior reconhecimento de sua singularidade e autonomia. Parece contraditório, mas o objetivo maior do percurso é então retornar ao estado fraterno com todos dos outros seres da criação, à posição de comunhão com o absoluto, sabendo-se agora, no entanto, lucidamente parte especial que compõe a plenitude, ciente e perceptivo do ser espiritual que o habita desde sempre, luz.

Bibliografia:
 ARMSTRONG, K.. Breve história do mito. 1° edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. I, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes Ltda, 1986.
 CAMPBELL. O poder do mito. 13° edição. São Paulo: Pallas Athenas, 1990.
 CAVALCANTI, Raissa. O mundo do pai, Mitos, Símbolos e Arquétipos. 9° edição. São Paulo: Cultrix Ltda, 1999.

Carolina Cosentino é arteterapeuta, especialista em Teoria e Prática Junguiana, pesquisadora de mitologia grega e presidente da Associação Pernambucana de Arteterapia.

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