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[CANTO DE LU] ‘Mulher sertaneja’

Por Lu Rabelo*
(texto escrito em 08/03/2006)

vovo_papai_baixa1No dia 8 de março de 1906  nascia Joana Luiza de Jesus, minha vó, mãe de meu pai, a quem chamávamos de vovó-papai. Acho bastante simbólico o 8 de março ser lembrado como o Dia Internacional da Mulher, pois pra mim esta data realmente representa a mulher, guerreira em essência.

Há exatamente 100 anos ela apareceu por aqui. Mulher raçuda, cafuza, cabocla,  filha do Sertão pernambucano, Joana aos 24 anos engravidou após um namoro com meu avô. Pelo pouco que sei, eles se conheceram numa festa em Santa Maria (Tupanaci) – vilarejo pertencente hoje ao município de Mirandiba, onde ela morou desde moça – e algum tempo depois ela engravidou. A família dele, na época, ajeitou para ele ir morar em São Paulo*.

Não sei da vida amorosa dela, o que muito lamento neste momento, pois há dez anos ela se foi pro lugar misterioso e eu nunca conversei com ela sobre esse assunto. O que sei mesmo é que ela é símbolo da fortaleza da mulher sertaneja. Enfrentou todos os preconceitos, lá pelo início da década de 30, num pequeno povoado à beira do rio Pajeú. Para sustentar meu pai, ela, analfabeta e cheia de sabedoria, foi agricultora, comerciante e lavou muita roupa nas águas pajeuzeiras. Nunca deixou faltar nada ao menino Zé de Joana.

Apesar de eu sempre ter morado longe dela, sempre a via nas férias. Às vezes (muito poucas) ela vinha estar conosco na capital, e outras (mais frequentes) íamos a Santa Maria vivê-la. Uma das coisas que muito me admirava quando chegávamos lá era o rio. Isso porque para chegar à vila, tínhamos que atravessar o Pajeú. Quando ele estava seco, o carro passava. Às vezes estava com pouca água e dava pra passar, mas lembro que eu ficava com medo vendo o carro ‘nadar’. Quando o rio tava cheio, tínhamos que deixar o carro do lado de cá e atravessar andando, com as coisas na cabeça. E era muita bagagem, porque sempre minha mãe levava muitas roupas para dar, além de brinquedos, balas, biscoitos. Aventura boa!

O que mais tinha por lá era criança. E eu, pequena, passava o tempo todo a brincar com meu povo. Era outra realidade. Eu menina da cidade, sempre tendo morado em prédios, vida classe média, lá encontrava o mundo natural. Nós, quando chegávamos, éramos a atração do povoado. Os jovens logo corriam pra procurar meus irmãos mais velhos. As crianças vinham a mim e à minha irmã Cláudia. E os senhores e senhoras iam depressa rever mainha e painho. Minha vó era só alegria.

Pois é, às margens do Pajeú, escondido no Sertão pernambucano, existe um dos lugares mais lindos que já vi. Onde ninguém imagina que haja vida humana, tá lá, um monte de criança, velhos e jovens ardendo no sol quente, nadando no rio, tangendo gado, plantando, colhendo, comendo bode e galinha, ‘tomando umas’ nos dois ou três botecos, sentando na praça, em em frente às casas, indo à igreja, vivendo a Natureza.

A casa da minha vó é daquelas que tem uma portinha de madeira dividida no meio, onde só a parte de baixo fica fechada pros bodes, cachorros, gatos, galinhas não entrarem. Na calçada, cadeiras de balanço, daquelas de tiras de plástico e que balançam mesmo. Eu até às vezes tinha um certo medo de virar pra trás de tanto que a cadeira emborcava. A água para beber tirávamos com um caneco de alumínio de dentro de grandes potes de barro. A comida, temperada com muito coloral, era feita num fogão de barro. Se não me engano era a única casa que tinha banheiro, pois meu pai havia mandado dinheiro para construir. Lembro muito também do papagaio. Era bem falante e morria de ciúme da minha vó. Meu pai conta que ganhou ele quando era moço. Então, nessa época de minhas lembranças, o papagaio já era ‘meio veínho’. Ele falava bem rápido e estridente: ‘Joana’ e ‘ô de casa?’.

A gente sempre ia pra lá na festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Era um festão. Vinha gente das vilas e municípios vizinhos, Mirandiba, Serra Talhada, Floresta…Uma das atrações – fora a missa e a procissão – era o leilão que ocorria na frente da igreja. Leiloava-se de tudo, manteiga, ovo, cachaça, galinha…Eu ficava assistindo o leilão todinho. Tinha também um bingo. Uma vez, quando eu já era adolescente, eu ganhei o prêmio máximo: um bode. Eu não quis nem ver o bode, porque logo que eu o ganhei acertaram de comer uma buchada no dia seguinte. Fiquei morrendo de pena e preferi não conhecê-lo, nem comê-lo. Se fosse hoje, não deixaria matá-lo não.

Quando chegava o momento de minha mãe distribuir os doces e brinquedos era fantástico. Eu logo me escalava pra entregar as sacolinhas para as crianças. Era linda a alegria delas. Uma fila imensa se formava em frente à casa da minha vó. Não sei de onde surgia tanta criança. Todas saíam satisfeitas.

Relembro claramente uma vez que fomos pra lá no feriado da Páscoa e presenciei uma brincadeira, que era ‘malhar o Judas’. Eu era pequena e não entendia. Tinha muito medo. Só via homens correndo atrás de outros homens com um boneco e achava tudo muito violento. Mesmo as pessoas me falando que era brincadeira, não achava que fosse. Não gostava.

O momento triste da nossa viagem era, exatamente, na hora da despedida. A gente se ia, com um nó na goela e no peito, e vovó ficava em pé na calçada, apoiada na bengala, chorando.

Hoje entendo muito bem porque minha vó nunca quis sair de lá, mesmo quando estava doente. Vivia humildemente, mas com verdade, com naturalidade, pisando na terra, fumando seu cachimbo, abençoando as centenas de afilhados, se balançando na cadeira na calçada em frente de casa.

Sempre que a gente tomava a benção a ela, ela dizia: Deus te dê Fortuna! E temos recebido realmente muita Fortuna ao longo dessa vida. Ela se foi tendo o maior sonho da vida dela realizado: ver o filho vencedor nesse mundo de tantas contradições.

* Obs.1: Dia desses, conversando com painho, ele me disse que uma vez quando ele encontrou com o pai dele, já velho, meu avô perguntou:
– ainda existem aqueles coqueiros lá no vilarejo? Antes de eu ir embora pra São Paulo, eu escrevi num deles.
Tempos depois, quando painho foi lá em Santa Maria encontrou escrito no coqueiro: ‘SAUDADE’ . E assinado: J.A.O (João Alves de Oliveira)

*Obs.2: Uma outra vez, painho me disse que meu avô, já velho e casado,  quis ir lá em Santa Maria ver minha vó. Segundo mainha, vovó confessou a ela depois que neste dia da visita a vontade dela foi dar um beijo nele! <3

* Lu Rabelo é cantadeiraarteterapeuta, jornalista e editora do Portal Flores no Ar.

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