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[CAIXA DE PANDORA] Quando as crianças adoecem no lugar dos pais

Por Juliana Florencio* |

Duda** tem oito anos. A mãe chega com a queixa de que ele está com muita resistência em ir para escola. Ora chora, esperneia e se desespera, ora adoece. As faltas preocupam essa mãe, pois podem prejudicar o desempenho escolar do filho. Quando nos aprofundamos no caso, sabemos que a mãe enfrenta uma depressão. Como é solteira e está sem trabalhar, passa os dias em casa. As ideações suicidas são bem presentes. Duda não quer ir pra escola. Duda não quer deixar a mãe só. Duda tem medo que a mãe se machuque. Duda quer proteger a vida da mãe.

Sabemos que as experiências vividas durante a infância são fundamentais. Não se trata de um fatalismo ou de um encarceramento em um repertório de possibilidades, mas digamos que são nossa “matéria-prima”.

Não trago aqui um jogo de causa e efeito. Não se trata disso. A partir das movimentações da vida, essa “matéria-prima” interage e se modifica. Esse fluxo é importante para a psique, pois o enrijecimento é o terreno ideal para a instalação das neuroses.

Gostaria de neste texto falar um pouco sobre um aspecto do sofrimento infantil: quando as crianças adoecem no lugar dos pais.

As famílias são sistemas. Isso implica dizer que este grupo é diferente da soma das partes. Mãe + Pai + Filha + Filho não é igual 4.

Tomando como exemplo a mesma composição familiar: Mãe + Pai + Filha + Filho = Família. Essa família é única, nunca será igual a outra, mesmo que composta por quatro pessoas.

Neste sentido, podemos entender que um movimento de um dos membros afeta todo o sistema. Por isso, numa família é inadequado falarmos de problemas exclusivamente individuais, pois cada membro está em ressonância com o outro e com o sistema.

O ser humano adulto, pelo seu processo de desenvolvimento, privilegia a fala como forma de comunicação. Sendo assim, muitas vezes paramos de perceber que existem outros meios atuando em nossos comportamentos e relações.

Não atentamos para a ressonância, por exemplo. Não percebemos que reverberamos nos outros e que os outros reverberam em nós. Às vezes isso ocorre por uma “simples” presença no mesmo ambiente.

Se o adulto é um tanto desatento para estas outras formas de troca e tem mais facilidade de traduzir experiências em palavras, as crianças não. Elas sentem e se expressam com os olhos, com o tocar, com o abraçar, com o bater, com o brincar, com o fantasiar, com os choros, com a risadagem, com o não querer comer, com o “ir mal na escola”, com os medos de dormir e com os sintomas também.

Bianca** tem 4 anos. A queixa trazida é sobre sua relação com os amiguinhos. Bianca se comportaria como “uma pequena tirana” e a escola sinalizou isto para os pais, aconselhando um acompanhamento psicológico.

Olhando mais profundamente sobre a dinâmica familiar, Bianca é quem ordena a casa – tanto no sentido de organização da rotina, quanto na imposição de suas vontades. Ao ser contrariada ela grita a plenos pulmões. Os pais e as visitas são “obrigados” a assisti-la dançar, cantar e interagir com ela o tempo todo, dificultando outras atividades.

Ela usa muito da sua energia para manter o foco sobre ela mesma.

Bianca foi concebida em um momento em que o casal não conseguia encontrar um caminho para lidar com os problemas que enfrentava.

A mãe tinha consciência da crise no casamento, mas não enxergava saídas. Então veio Bianca. Uma esperança em dias melhores. Ela foi gerada, a princípio, a partir do desejo da mãe. Em um segundo momento, o pai aceitou a ideia da gravidez ao mesmo tempo que tentava, a partir desse evento, sair de uma posição de estar “encurralado” pelo conflito que a esposa sinalizava e que eles não conseguiam solucionar.

Bianca veio trazendo esperança da continuidade deste casamento, o que implicaria, como entendemos, na sua “responsabilidade” em manter a família unida.

Em um outro nível, Bianca veio pra “distrair” os pais de seus sofrimentos individuais e de casal.

E é isso que Bianca faz. Não deixa espaço pra mais nada que não seja ela. Utilizando grande parte da sua energia para manter os pais “desfocados” de si mesmos.

No meu entendimento sistêmico, Bianca atua dessa forma não apenas porque foi uma das condições para sua chegada ao mundo, mas, também, por amor. Amor por seus pais. Por querer cuidar deles. Por ter entendido que questões profundas e de relacionamento são perigosas e que é melhor não lidar com elas.

Essa criança está sobrecarregada na função de manter os pais ocupados para que eles não entrem em sofrimento maior ou se separem.

A terapia, neste caso, desenrolou-se no sentido de colocar os membros da família em seus devidos lugares.

Os pais é que são os adultos e que deveriam lidar com suas questões. Eles precisam liberar a criança dessa responsabilidade que não é dela.

Entramos num trabalho para que eles compreendessem e tomassem para si seus próprios problemas, a fim de que Bianca percebesse que as pessoas têm a capacidade de lidar com crises e desafios.

Esse reconhecimento de que temos capacidade de gerir nossas vidas, ultrapassa as palavras. É vivenciado a partir das experiências da família. Toda família, como todo sistema, possui um “clima”, uma vibração que pode ser o de “fé na vida” que incluiria a resolução de crises, ou um medo da vida que apareceria em comportamentos evitativos, por exemplo.

Pra finalizar eu trago o caso de Jorge**, um homem de 30 anos. Quando sua irmã mais nova saiu de casa para estudar em outro país, Jorge pede demissão do trabalho, alegando que a empresa não dava oportunidade de crescimento, ao mesmo tempo que seu namoro de cinco anos terminava. Jorge decide, então, voltar para a casa dos pais. Ele passa, inclusive, a depender financeiramente deles. Sua mãe queixa-se da bagunça e das “cuecas espalhadas pela casa” e das constantes brigas do filho com o pai por causa do uso do carro.

A partir de um olhar mais aprofundado, percebemos que as atitudes tomadas durante toda a vida deste casal era da manutenção do casamento por causa dos filhos.

Este relacionamento teria se sustentado mesmo apesar das várias experiências extra-conjugais do pai que trouxeram impactos muito negativos para toda a família. Muitas mágoas, brigas e ressentimentos existem entre esse casal.

No entendimento familiar, tanto o pai, como a mãe teriam feito um enorme sacrifício para manterem-se casados em nome dos filhos.

Para Jorge esse caminho de infelicidade tomado pelos pais não poderia ter sido em vão. Agora seria sua vez de se sacrificar para manter a família unida, mesmo que isso lhe custasse seu desenvolvimento como homem, sua trajetória profissional e sua vida afetiva.

Para Jorge seria sua vez de retribuir. De cumprir com sua parte no pacto. Infelizes, mas juntos. Foi assim que ele entendeu que a vida deveria ser.

Como ser feliz agora, se os pais foram infelizes a vida toda por ele? Isso não seria justo, assim entendeu Jorge, mesmo que inconscientemente.

“Não há nada que tenha influência psíquica mais forte no ambiente circundante, especialmente sobre os filhos, do que a vida não vivida dos pais. Quando os pais descuidam de sua felicidade para procurar a felicidade dos filhos, deixam aos filhos uma herança má, uma má impressão do passado. (…) Se os pais souberem amar a si próprios aqui e agora, os filhos aprenderão a fazê-lo.” C. G. Jung

Por que trago o caso de um adulto?

Nós, mesmo que crescidos, continuamos em parte crianças.

Queremos proteger e cuidar de quem amamos, mesmo que tenhamos aprendido que amar significa ser infeliz.

Por amor aos nossos pais e pelas crenças tão intrínsecas, inconscientes, que ficaram em nós impressas, repetimos ciclos e não nos permitimos fazer diferente, trilhar nosso próprio caminho.

Precisamos nos trabalhar para não perpetuarmos “pactos” feitos mesmo antes do nosso nascimento. Podemos tomar consciência de que não é compulsório segui-los. Não precisamos repetir certos enredos dos que vieram antes de nós.

Cada um tem seu lugar. Ninguém pode tomar o destino do outro – mesmo que este outro seja o de um ser amado.

Ao tentarmos viver pelo outro, ainda que por amor, tiramos a dignidade deste, pois assim o julgamos fraco, como se ele não tivesse a capacidade de viver sua vida. É preciso muita coragem para romper padrões de sofrimento entendidos como regra.

“Uma coisa eu aprendi: que é preciso viver esta vida. Esta vida é o caminho, o mais procurado, o caminho para o incompreensível, que chamamos de divino. Eu encontrei o caminho certo: Ele me conduziu em direção a você, minha alma… ” C. G. Jung

Seguir o próprio caminho, é o ato mais explícito de dizer sim à vida. É a forma mais genuína de honrar a vida que nos foi dada e que foi passada de geração em geração até chegar em nós através da nossa mãe e do nosso pai.

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
Email: juflorenciocs@gmail.com

**Os nomes foram alterados para preservar o sigilo.

 

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