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Recife: A cidade que contratou seu futuro com o inferno

Por Pablo Holmes
(publicando originalmente no blog Acerto de Contas)

A idéia de que o ser humano percebe desatinos e absurdos, estando apto a combatê-los e criticá-los é extremamente improvável. De fato, ao olhar ao redor, percebemos que os maiores absurdos podem ser facilmente naturalizados. Se prestamos atenção, então, ao cotidiano da nossa cidade e a forma como seu futuro vem sendo definido, fica a clara impressão de que, em Recife, temos uma capacidade ainda maior de naturalizar a insensatez.
Vivendo há alguns anos fora da cidade, sempre voltei em intervalos regulares. Nos últimos anos, passei a ter a triste sensação de que os maiores absurdos foram feitos em sua vida cotidiana, sem que seus habitantes pudessem refletir sobre eles.
Estando na cidade nos últimos dias, tive a clara sensação de que algumas dessas tendências se tornaram irreversíveis. E, ainda assim, parece que muito poucos se dão conta do que está acontecendo. De fato, a insensatez foi passivamente naturalizada.
Ao assistir ao filme acima, realizado por Gabriela Alcântara e Marcelo Pedroso, encontrei pistas que me pareceram explicar um pouco o modo como isso foi possível. Nele, somos defrontados com o depoimento franco e genuíno de um dos agentes responsáveis pelas transformações mais profundas por que passou nossa cidade nos últimos anos.
Sua argumentação é direta e indiscutivelmente sincera. E, se ela pode surpreender alguns como produto do despropósito, tenho certeza de que, aos ouvidos de muitos outros, ela soará bastante natural.
Com efeito, o Sr. do vídeo generaliza conceitos e define, em um só golpe retórico, aquilo que, para ele, seria nada menos que a “natureza humana”. Recorre ao que, segundo ele, seria uma tendência “quase genética” do “homem”, para justificar o que lhe parece o processo natural e irreversível de radical privatização e verticalização da ocupação urbana que transformou a face do Recife nos últimos anos. Em suas palavras, essas transformações ganham uma forma interessante, que pode nos explicar um pouco acerca do que aconteceu.
Transformação urbana
Como é de conhecimento de qualquer cachorrinho de estimação que tenha passeado pelas quase inexistentes calçadas do Recife na última década e meia, a cidade vivenciou, em muito pouco tempo, uma profunda transformação. Até mesmo seus bairros mais agradáveis – e outrora um tanto elegantes – se transformaram no retrato mais fiel do caos urbano das megalópoles do terceiro mundo.
Bairros como Graças, Jaqueira, Parnamirim, Espinheiro, Casa Forte ou mesmo Boa Viagem esqueceram, definitivamente, a calma um tanto bucólica que os marcava ainda em fins década de 1980 e passaram a lembrar o caos urbano típico de metrópoles como o Cairo ou a Cidade do México.
De fato, as áreas mais utilizadas pela população, em Recife, sempre foram as mais mal cuidadas. Jogados para os morros e encostas, onde foram obrigados a morar, os mais pobres passaram a ser, já há algum tempo, os únicos que ainda frequentam, ao menos durante o dia, o centro da cidade.
Entretanto, nos últimos anos, também as velhas e novas classes médias viram uma contínua e radical transformação dos seus bairros tradicionais. Mesmo em bairros como Madalena, Torre, Rosarinho, o comércio local foi gradativamente diminuindo de intensidade, tendo seus espaços tomados por edifícios, estacionamentos e serviços de baixo valor. Compras passaram a ser feitas quase que exclusivamente em hipermercados. Calçadas foram definitivamente esquecidas, piorando ainda mais e dando um aspecto insólito a uma cidade em que calçadas vazias convivem com ruas paralisadas por congestionamentos.
Ao final, os espaços de convivência coletiva foram cada vez mais reduzidos aos shopping centers e aos salões de festa de edifícios, ocupados sem qualquer espontaneidade. Aí, uma arquitetura assassina, de ângulos retos e nenhuma criatividade, naturalizou uma estética funcional de extremo mal gosto, cujo melhor exemplo é o insólito hábito de revestir faixadas e paredes com certa cerâmica barata, deixando-as com a interessante aparência dos revestimentos de banheiros de restaurantes de beira de estrada.
Por outro lado, seguindo o processo de ocupação desordenada e verticalizada, os carros passaram a ser, de modo ainda mais radical, os senhores da cidade. Andar a pé passou a ser visto não só como uma aventura, mas quase como uma vergonha social: talvez um atestado de que ao pedestre lhe faltam as condições de adquirir um carro e se tornar uma pessoa digna de valor. E, assim, naturalizamos também a idéia de que temos de conviver com ruído insuportável e o calor exparzido por motores em todos os recantos da cidade.
Mas, se do ponto de vista legal é possível regular o fluxo de automóveis recorrendo a políticas de rodízio, pedágio ou mesmo altas nas taxas de licenciamento, o mesmo não pode ser feito com edifícios de 40 andares já construídos.
Mesmo que, um dia, consigamos diminuir de modo substancial a miséria e tenhamos condições de repensar a cidade, melhorando o transporte público, iremos enfrentar sérios problemas para fazê-lo, devido à forma inescrupulosa como a cidade foi ocupada e verticalizada nos últimos 20 anos.
Como poderíamos, por exemplo, introduzir ciclovias, trens de superfície ou transporte coletivo limpo e silencioso nos bairros da zona norte? Afinal, com suas ruas estreitas e ocupadas por edifícios de 30 ou 40 andares em ambos os lados, de onde viria o espaço? Deveríamos desapropriar toda uma margem da Rua do Futuro, Rosa e Silva ou Rui Barbosa, demolindo sua multidão de prédios?
Naturalizações da insensatez e democracia
O que mais entristece é o fato de que esse processo continua; e a passos largos. Mais do que isso, ele parece continuar naturalizado: visto como um destino irrevogável.
Recife não foi capaz de desnaturalizar a forma destruidora como seus contornos foram definidos e parasitados por uma indústria da construção civil deixada absolutamente desregulada. Naturalizamos essas transformações e parecemos acreditar se tratar de um processo irreversível. Não fomos capazes de imaginar uma cidade diferente.
Nesse ponto, é preciso dizer que a argumentação do Sr. do vídeo de Gabriela e Marcelo não nos revela apenas como pensa a indústria da construção civil. Na verdade, ela nos diz algo a respeito da cidade como um todo, da forma como pensamos e vivemos. Ao definir a “natureza humana” segundo seus interesses comerciais, aquele Sr. apenas verbalizou um poder exercido – talvez até mesmo inconscientemente – por meio de uma naturalização de absurdos que não é nova. Na verdade ela remonta a nosso passado mais imemorial.
Recife sempre foi, afinal, uma cidade dividida, privatizada. À medida que os prédios subiram, murando seus jardins privados e deixando aos pedestres uma exígua calçada, onde têm de disputar cada centímetro com carros e motocicletas, reproduziu-se apenas esse passado, que antes dividia casa grande e senzala.
Por outro lado, essa forma de reproduzir o poder não é uma invenção nossa. Idéias simples, tornadas naturais, são a raiz de todo totalitarismo. À medida que se naturalizam, idéias governam o mundo à revelia dos governados: “Os negros são inferiores”; “os homossexuais são doentes”; “os nordestinos são burros”; “os brasileiros são preguiçosos”. Uma vez aceitas como naturais (e elas muitas vezes o são!), essas idéias permanecem sempre as mesmas, intocadas, ainda que o tempo passe a seu redor. Assim elas são capazes de definir o futuro, sem que possam ser problematizadas no presente.
Contudo, enquanto algumas sociedades parecem mostrar certa tendência para naturalizar absurdos, outras parecem conseguir observá-los, percebendo sua contingência.
Com efeito, o que caracteriza a democracia é exatamente sua capacidade de tornar decisões visíveis, desnaturalizando idéias que pretendem descrever de modo totalitário a realidade. Dessa maneira, uma sociedade democrática é capaz de ver decisões como o resultado de uma observação da realidade que entende que o futuro depende apenas das decisões que tomamos no presente. Nela, ninguém está autorizado a definir a “natureza humana” ou a fixar verdades que são tornadas impossíveis de ser criticadas.
Decidir passa a implicar, assim, uma certa responsabilidade. Aquele que decide pode ser cobrado, seja por aqueles que serão atingidos por sua decisão ou mesmo por sua própria consciência. Ele sabe que sua decisão não é o resultado de um desígnio natural ou sobrenatural. Não pode dizer que seu ato de decidir é guiado por um destino imponderável ou uma “natureza humana” incontestável.
Numa democracia, aquele que decide tem de estar, assim, consciente de que cada decisão será constitutiva para um futuro que, em maior ou menor grau, tem consequências marcantes para toda a coletividade.
Ao observar o Recife, tenho a impressão de que nossa ancestral falta de democracia se mantém da pior forma possível. Graças a ela, continuamos a abrir mão da capacidade de decidir sobre o futuro. E, desse modo, abdicamos também de todo discernimento sobre as consequências de decisões que, tomadas agora, vão definir nossas vidas pelos próximos 30, 50 ou mesmo 100, 200 anos. É como se essas decisões não existissem. Como insinua o Sr. do filme, elas são parte de um processo natural e inexorável de desenvolvimento.
Um movimento pela cidade
Hoje, a responsabilidade com a cidade confunde-se com a própria possibilidade da democracia entre nós. Longe de se ser um problema que pode ser resolvido exclusivamente por meio da combalida política partidária, o inferno cotidiano da cidade diz respeito a um esforço coletivo mais abrangente.
A verticalização desordenada e a privatização descontrolada que alimentam nosso caos urbano crescente estão bastante avançadas, mas ainda podem ser estacionadas.
Nesse sentido, apenas um amplo movimento, que deve ser político, mas não deve ser partidário, pode transcender os limites impostos ao débil poder público por aqueles que se apropriam da cidade de modo totalitário. Tampouco o Estado pode enfrentar sozinho a naturalização que pouco a pouco foi aceita como irreversível.
Esse amplo movimento deve ter como objetivo esclarecer a sociedade de que o futuro da cidade é depende de decisões que têm de levar em conta sua permanente constituição como uma coletividade interdependente. Desse modo, tal movimento poderá impedir que dois ou três grupos empresariais contratem, à nossa revelia, o futuro do Recife com o inferno, utilizando-se para isso das mais insólitas definições do que seja a “natureza humana”.

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