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‘Em memória ao poeta Ronaldo Cunha Lima’, por Dirceu Rabelo

Abalado com a morte do poeta paraibano Ronaldo Cunha Lima – que faleceu no dia 7 de julho de 2012 – o sonetista pernambucano Dirceu Rabelo lembrando que Ronaldo solicitou certa vez a um juiz, em versos, a soltura de um violão apreendido por um delegado de polícia, Dirceu escreveu um soneto em homenagem a Ronaldo:

Em memória ao poeta Ronaldo Cunha Lima

Silêncio, violão, fala baixinho,
recorda que já foste encarcerado.
E agora já não mais tens ao teu lado
quem te soltou, movendo um habeas-pinho.

Mas vê: se novamente algum vizinho
for reclamar por ser incomodado
com teus acordes, indo ao delegado
prestar queixa de ti, há um caminho

que mesmo port-mortem tomarão
os poetas maiores, com respaldo
em lei superior, como Ronaldo,

que mandará do Além, onde está vivo,
desta vez habeas-corpus preventivo
contra qualquer mandado de prisão.

Dirceu Rabelo
Gravatá-PE, 14/07/2012

Abaixo, seguem os versos de Ronaldo Cunha Lima ao juiz:

Habeas-Pinho

Senhor Juiz,

O instrumento do “crime”que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revolver ou pistola,
Simplesmente, Doutor, é um violão.

Um violão, doutor, que em verdade
Não feriu nem matou um cidadão
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
Entre ambos inexiste afinidade.

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam mágoas que povoam a vida
E sufocam as suas próprias dores.

O violão é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório.
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.

Ele, Doutor, que suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta, jamais, em um arquivo
Sem gemer sua prima e seu bordão

Mande entregá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas finas e sonoras.

Liberte o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
Derramando nas praças suas dores?

Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua)
Não sufoque o cantar que vem da rua,
Que vem da noite para saudar o dia.

É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, enfim, deferimento.

 

Conta-se que o juiz, por sua vez, despachou utilizando a mesma linguagem do poeta:

Recebo a petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no Cartório, um violão.

Emudecer a prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,
É desumana e vil destruição
De tudo que há de belo no universo.

Que seja Sol, ainda que a desoras,
E volte à rua, em vida transviada,
Num esbanjar de lágrimas sonoras.

Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de luz, plena madrugada,
Venha tocar à porta do Juiz.

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