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Cura pela Melodia, por Ricardo Giagni

Em todas as culturas, sociedades e épocas, considera-se que a música detém um poder específico sobre a alma, a consciência e os sentimentos dos indivíduos e da coletividade, qualquer que seja a forma que a atividade musical assume na realidade histórica e social concreta. Todos já experimentamos esse poder caprichoso: a audição casual de um trecho de canção, as notas de uma sonata clássica ou um solo jazzístico de piano atingem, com precisão misteriosa, zonas de nossa memória e de nossa sensibilidade até então na sombra. Somos assim inesperadamente – e de boa vontade – dominados por uma emoção pura inominável – e familiar.

Somos tentados a pensar a música como uma potência que escapa às hierarquias e generalizações, um domínio indiferenciado e caótico: afinal, essa experiência parece ser pessoal, embora compartilhada por milhões de pessoas, e, além disso, qualquer que seja o tipo de música, o resultado não é alterado (nesse campo, Bach vale tanto quanto Laura Pausini). Não devemos, porém, subestimar esse poder universal, tantas vezes identificado como uma das marcas fundamentais da natureza humana, sobretudo quando ele tem a possibilidade de alterar os estados de consciência das pessoas. É o que ocorre, por exemplo, na terapia de dança e música do tarantulismo, que realiza rituais antiguíssimos, e em experiências de possessão do êxtase ativadas por sons, presentes em todo o mundo, da Terra do Fogo à Sibéria, do Brasil ao Vietnã.

O som governa a mente do homem e os deuses não são estranhos a esse atributo, se é verdade que, nos diversos mitos de criação, sempre que a gênese do mundo é descrita com suficiente precisão, um elemento acústico intervém no momento decisivo da ação: no instante em que a entidade divina manifesta sua vontade de criar o céu, a terra, os homens e todas as coisas, ela emite um som, muitas vezes cantando ou tocando um instrumento.

Os poderes dignos de uma divindade parecem se transferir a essa forma de expressão difusa em todas as culturas, capaz de suscitar emoções profundas, comover, entristecer, excitar e até promover a cura: o xamã africano reanima o jovem debilitado tocando ao seu lado um pequeno tambor, com um ritmo progressivamente idêntico ao do coração do rapaz, depois o alterando até atingir o correto batimento cardíaco. Sugestão? Talvez, mas, sobretudo, uma questão de ritmo, como no caso do baterista que arrebata o público.

O som musical, integrado no sistema de representações que lhe confere seu poder específico, surpreende não só porque intervém de modo direto no estado de consciência do indivíduo, mas, ainda mais, por sua capacidade de influenciar coletivamente o comportamento das pessoas. Os mais de 700 mil jovens europeus que tomaram as ruas da Berlim unificada dos anos de 1990, não para “mudar o mundo”, mas para experimentar, por horas, o impressionante rito pós-moderno da rave mais gigantesca da história, foram protagonistas, testemunhas e herdeiros inconscientes de uma vivência de estimulação psico-motora coletiva não muito distante da produzida pelos ritos ligados aos transes dionisíacos, dessa vez induzidos pelo som implacável da música techno. O som e o ritmo eram encantatórios, como o dos xamãs, talvez potencializado pelo álcool e outras substâncias: mas esta também é uma história antiga…

É evidente que a música “excita as almas”. Daí a desconfiança geral, a má reputação de certas práticas musicais para as instituições, em todas as épocas e regimes: atraente, universal e perigosa, a complexa questão da música é por vezes rebaixada a simples problema de ordem pública.

A universalidade da resposta individual e coletiva aos poderes da música significa que esta corresponde a uma disposição psicofísica inata da natureza humana, mais ou menos desenvolvida dependendo da pessoa. Haveria algo como uma “mente musical”? E, caso exista, quais são os processos psíquicos e fisiológicos ativados na produção e audição de um trecho musical?

Os progressos da pesquisa científica sobre o cérebro geraram conhecimentos a respeito do “onde” e do “como”: sabemos que o hemisfério direito é o “lócus musicalis” da tonalidade, do timbre e da harmonia, enquanto outros aspectos da música, como o ritmo, pertencem ao hemisfério esquerdo. Essa descoberta e muitas outras não bastam, todavia, para afirmarmos que a ciência explicou a criatividade musical e seus poderes, destinados, em alguma medida, a permanecer ocultos. Em particular, o “porquê” da música permanece fora do horizonte da demonstração científica.

O artista tem o conhecimento da arte e a mão tremente, escreveu Dante no Canto XIII do Paraíso: isto é, o artista possui a técnica, o habitus, o domínio de sua arte, mas só é artista em razão daquele “tremor”, que não pode ser calculado ou dominado, aquela hesitação sem a qual nada ocorre e sem a qual a arte não é possível. É em virtude desse tremor que a arte, e, portanto, a música, escapa a qualquer forma excessiva de controle racional. O poder da música jamais foi plenamente demonstrado pela ciência, mas sempre foi descrito: comunidades das mais diversas tradições e culturas não só descreveram e aceitaram esse poder, mas empenharam-se em celebrá-lo coletivamente, com seus rituais, danças, cantos, corpos e instrumentos. Para todas elas e um pouco para todos nós parece valer a célebre observação de Friedrich Nietzsche: sem música, a vida seria um erro.

(Artigo reproduzido da revista Scientific American: Mente e Cérebro)
Ricardo Giagni é musicólogo, compositor e ensina história da música para cinema na Universidade de Lecce, na Itália.
Edição 198 – Julho 2009 (Revista Mente & Cérebro, subdivisão da Scientific American)

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