[COLUNA DO SCALAMBRINI] Por uma política energética democrática, ecológica, sem energia nuclear e sem gás de folhelho (xisto)
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA*
Por uma política energética DEMOCRÁTICA, ecológica, sem energia nuclear e sem gás de folhelho (“xisto”)
Notícias relacionadas à energia e tecnologia nuclear, procedentes da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Argentina (22 a 24/01/2023), surpreenderam e preocupam muito as organizações, movimentos sociais e populares, cientistas, cidadãos e cidadãs, abaixo-assinados, pelos impactos negativos que as tratativas aventadas trarão com o agravamento da degradação socioambiental e dos conflitos com populações originárias. A anunciada agenda nuclear de integração Brasil/Argentina obteve péssima repercussão em redes sociais dos dois países.
Na área do combustível fóssil, o presidente Lula afirmou a disposição de financiar, via BNDES, o gasoduto Nestor Kirchner, para transportar gás de folhelho (também conhecido como gás de xisto) a partir da Patagônia, onde há registros de confrontos com a comunidade indígena Mapuche. O gasoduto chegará a Buenos Aires, podendo até alcançar o Brasil. A sociedade brasileira reagiu de imediato enviando uma carta ao Presidente Lula com assinatura de dezenas de especialistas numa ação do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM). Nela destacam contar com “a visão progressista do BNDES para conduzir iniciativas que sejam condizentes com a implementação de um modelo de Desenvolvimento Sustentável, que deve se dar especialmente por meio de uma ação inter e transdisciplinar do Governo, como defende a Ministra do Meio Ambiente Marina Silva.”
A exploração desse gás é reconhecida mundialmente pelo alto perigo e fortes impactos socioambientais, como a contaminação dos aquíferos. É uma técnica proibida em países progressistas e em vários Estados do Brasil. Foi debatida no Congresso Nacional, há cerca de 8 anos, mas não se obteve uma decisão definitiva. A ministra Marina Silva declarou que “o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima não tem conhecimento sobre o projeto e da intenção do BNDES em financiá-lo. Trata-se de um empreendimento complexo que envolve riscos socioambientais significativos a serem devidamente considerados”.
O presidente Lula e o presidente Alberto Fernández relançaram um acordo, com um capítulo referente à energia e tecnologia nuclear, afirmando que “consolidaremos nossa posição como provedores de tecnologia nuclear com fins pacificos”. Também em Buenos Aires, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação Luciana Santos anunciou parceria com a Argentina para a construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), destinado à produção de radioisótopos para uso na medicina e para apoiar pesquisas científicas na área nuclear.
Como é de conhecimento público, o programa nuclear brasileiro, imposto pela Ditadura Militar, sempre foi ligado a um programa militar paralelo, para o qual a construção de centrais nucleares e o desenvolvimento do ciclo de combustível atômico serviam de disfarce e ao mesmo tempo para a produção de combustível nuclear. O pacto de cooperação nuclear com a República Federal Alemã, em 1975, tinha como objetivo justamente permitir ao Brasil adquirir a tecnologia de enriquecimento do urânio, necessário para fornecer matéria-prima adequada à fabricação de bombas atômicas. Felizmente, esse acordo não vingou.
A inclusão na Constituição de 1988 de artigo que restringe o uso de tecnologias nucleares a fins pacíficos, bem como o fechamento do Túnel do Cachimbo, no governo Collor, não foram suficientes para encerrar o investimento público na atividade atômica. Isto porque setores das FFAA, em especial a Marinha, agora fortalecidos por empresas e lobistas nucleares, continuaram e seguem pressionando os sucessivos governos federais a investir nessa tecnologia de geração de energia suja, cara e perigosa. Tanto foi assim, que depois de um longo e prolongado descanso, o programa nuclear brasileiro foi retomado em 2007, sem que maiores justificativas públicas fossem dadas.
A adoção da energia atômica em nosso país nunca foi objeto de discussão e muito menos de consulta, não fazendo parte dos programas dos sucessivos candidatos à Presidência da República, que, no entanto, seguiram implementando seu uso. Os perigos e inconvenientes dessa tecnologia são, portanto, pouco conhecidos da opinião pública, o que explica ela continuar a ser incrementada até hoje.
A sua eleição, Presidente Lula, em novembro de 2022, resultou de um enorme esforço de grande parte da sociedade brasileira para afastar a ameaça de que nosso país mergulhasse definitivamente em um regime de exceção, como prometia, e ansiava, o pior governo e presidente que a História brasileira conheceu. Em torno da candidatura Lula, reuniram-se forças de várias origens, cidadãs e cidadãos que acreditam que a Democracia, apesar de suas imperfeições, é o único sistema que permite a uma sociedade buscar seus rumos futuros de forma coletiva, pacífica e eficiente. Só a Democracia nos conduz a decisões mais inteligentes e mais consensuais. Por isto mesmo, aqui invocamos seus compromissos de campanha feitos com a cidadania brasileira – em especial no que se refere à restauração e democratização da política ambiental, climática e energética – quando assumiu, com ênfase, a prioridade no enfrentamento da crise ecológica e a defesa da sustentabilidade ambiental e das energias renováveis.
A energia nuclear nunca deixou de ser assunto polêmico. Dividiu sociedades, cientistas e governos desde a sua adoção após a II Guerra Mundial e, mais ainda, depois das catástrofes de Chernobyl e Fukushima. Assim, muitos países, como a Alemanha decidiram encerrar seus programas atômicos. Como se não bastassem todos os problemas ambientais e de insegurança em radioproteção, a fonte nuclear é muito cara e pouco eficiente, não fazendo sentido cogitá-la em um momento em que boa parte da população brasileira carece de alimentação adequada, saúde, educação, emprego e moradia.
Acreditando que seu empenho e responsabilidade com a defesa da Democracia, da Justiça Ambiental e da Paz são pra valer – que governará com “seriedade fiscal, politica e social” – reivindicamos que não assuma compromissos neste momento e não invista recursos do BNDES em tecnologias perigosas e quando tencione fazê-lo, que sua decisão seja antecedida por um amplo debate com a sociedade brasileira, já que é ela, em último caso, quem arcará com os seus custos e com as suas consequências negativas.
Quando e se esse momento chegar, estaremos inteiramente disponíveis para debater e expor os nossos argumentos.
Respeitosamente,
Articulação Antinuclear Brasileira
Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares
Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental
Heitor Scalambrini – Doutor em energética (França), professor aposentado Universidade Federal de Pernambuco, fundador da Articulação Antinuclear Brasileira.
Marijane Lisboa – Dra. em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conselheira da CTNBio de 2012 a 2015, fundadora da Articulação Antinuclear Brasileira e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Fernanda Giannazi – Auditora fiscal, fundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto – ABREA e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora – ABRAST.
Chico Whitaker – Prêmio Nobel Alternativo (Right Livelihood Award) de 2006, Consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB, cofundador do Fórum Social Mundial.
Ivo Polleto – Cientista social e educador popular, membro do Grupo Executivo do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS)
Célio Bermann – Professor Associado 3 no Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, coordenador do Grupo de Pesquisa em Governança Energética, certificado pelo CNPq.
Brasil, fevereiro de 2023.
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*Com cópia para as ministras do Meio Ambiente, da Ciência, Tecnologia e Inovação, dos Povos Indígenas; ministros das Relações Exteriores do Brasil, das Minas e Energia, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, ministros do Supremo Tribunal Federal, do TCU e procuradores da PGR.