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[CAIXA DE PANDORA] Reflexões pós-eleitorais – A Sombra Brasileira

| Por Juliana Florencio* |

Faço parte do grupo de brasileirxs que assistiu atônito a vitória de Bolsonaro. Uma coisa tão improvável, que parecia tão distante, aconteceu. Agora precisamos digerir.

Partirei desta percepção errônea de improbabilidade, pois estava baseada numa subestimação e, até, numa ingenuidade minhas.

Eu realmente não acreditava que a eleição de Bolsonaro fosse possível, pois conhecia seu discurso e o achava intolerável para um político.

Considerando as arbitrariedades e injustiças no impeachment de Dilma (inclusive com Bolsonaro exaltando um torturador), a prisão de Lula e a repercussão do assassinato de Marielle Franco, eu obviamente sabia que parte dos brasileirxs odiava o PT, e as esquerdas a reboque.

Tal repulsa emerge seja por motivos ideológicos, ou a partir do projeto de destruição deste partido pela grande mídia, ou baseada em fake news.

Mesmo assim, não conseguia entender a opção por Bolsonaro, já que havia outrxs candidatxs.

Dai o erro da consideração do improvável… Na verdade, estávamos inconscientes das nossas sombras coletivas enquanto nação.

Estávamos adormecidxs.

Sabemos que o racismo, o machismo e a cultura de privilégios estruturam nossa sociedade.

Muitxs estão na luta contra essas opressões e, por isso, acreditávamos que estivéssemos num processo evolutivo que tenderia pra o alcance de uma nação mais pautada em valores humanísticos.

A partir da atuação dos movimentos sociais, discursos opressores não puderam ser ditos, tão abertamente, por serem considerados não éticos. Mas, isso não significa que estes aspectos deixaram de existir. Eles apenas estavam apenas escondidos esperando alguém que os legitimasse. E esse alguém chegou. A princípio não era nem levado a sério, mas foi ganhando adeptxs que em grande parte dos casos, escondiam-se sob o manto de indignadxs contra corrupção ou a favor de valores da”família tradicional.”

Jung desenvolveu o conceito de Sombra para explicar aquela parte “insuportável” e rejeitada de nós mesmos, ela é inconsciente e não podemos olhar diretamente para ela.

Em um processo de autodescoberta, começamos a perceber nossos aspectos sombrios através de atos e emoções intensas (como uma “raiva cega”, por exemplo). Entendemos que não é o outro que faz isso conosco, nós é que projetamos nele esses aspectos intoleráveis. Com a conscientização, diminuímos este sentimento de “o inferno são os outros” (projeções) e nos responsabilizamos pelo que sentimos e por como agimos.

Dá para perceber que isso não é tarefa fácil. Na verdade é das mais difíceis! Geralmente esse “cair em si” – uma espécie de tombo mesmo, um “eu não sou tão bom como eu imaginava” – vem acompanhado de uma desilusão, às vezes manifestada como depressão.

Um luto pela ideia de si mesmo perdida e pelo encontro da própria sombra.

Apesar de dolorido, é um processo riquíssimo de ampliação do ser e de possibilidades da vida.

A psicoterapia é uma oportunidade de viver isso: o encontro com a própria sombra e o lidar com ela.

Acontece que nem todxs passam por este processo. Ou por não estarem preparados, ou por não estarem dispostos.

A Sombra é individual, mas se manifesta também de maneira coletiva “que pode levar a ações perigosas, como racismo… bodes expiatórios… criação de inimigos… e a guerra.” (ABRAMS E ZWEIG)

A manifestação dessa sombra coletiva questiona, inclusive, as evidências e fatos, liberando-a de discernimento e deixando-a agir de forma autônoma, irracional.

Temos, como exemplo, a insistência em fake news e o negacionismo: posicionamentos, por exemplo, contra estudos científicos que demonstram a importância da educação sexual, as mudanças climáticas pela ação do homem, a importância da amamentação etc.

“O que significam as terríveis regressões do nosso tempo? O ritmo de desenvolvimento da consciência na ciência e na técnica foi rápido demais, deixando para trás o inconsciente que não acompanhou seu passo, impelindo-o assim a uma posição de defesa, a qual se manifesta em uma vontade generalizada de destruição. Os ismos políticos e sociais de nossa época pregam todo tipo de ideais imagináveis, mas por detrás dessa máscara perseguem o objetivo de rebaixar o nível da nossa cultura, na medida em que limitam as possibilidades individuais de desenvolvimento e até as impedem de modo total. Fazem-no em parte criando um caos domado pelo terror, do qual resulta um estado primitivo que apenas oferece uma limitada possibilidade de vida, um estado que excede os piores momentos da “obscura” Idade Média. Resta-nos esperar para ver se da experiência da escravidão indigna resultará um anseio maior por uma liberdade espiritual.” (JUNG)

Jung baseia-se na experiência de ter sido contemporâneo à ascensão do nazismo. Hitler também tinha um discurso que captava os aspectos sombrios da nação alemã. Com sua fala de patriotismo trazia latente todo uma irracionalidade sombria querendo ser realizada através de criação de inimigos, manifestações de ódio, violência e exclusão.

“Este problema não pode ser resolvido coletivamente, pois a massa não se modifica se o indivíduo não se modificar. Nem mesmo a melhor das soluções pode ser imposta ao indivíduo, uma vez que ela só será boa se estiver conectada a ele mediante um processo natural de desenvolvimento. Trata-se pois de um empreendimento sem esperança depositar essa expectativa em receitas e medidas coletivas. A melhoria de um mal generalizado começa pelo indivíduo, e isto só quando este se responsabiliza por si mesmo, sem culpar o outro”. (JUNG)

A posição de Jung é uma espécie de “saída para dentro”. Nenhum “ismo” dará conta das nossas demandas pessoais e coletivas.

Nenhum: nem capitalismo, nem comunismo, nem patriotismo, nem cristianismo, nem ateísmo, nem socialismo, nem liberalismo, nem orientalismo, nem cientificismo, nem conservadorismo, nem psicologismo, nem misticismo…

Os “ismos” tendem a nos privar da nossa reflexão sobre nós mesmos e sobre a vida cotidiana. Abrimos mão da autoconsciência e da crítica em prol de um ideal ou fé. Nos desresponsabilizamos para seguir uma cartilha que já está pronta e foi construída sem nossa participação.

Não venho defender um niilismo, nem o individualismo, nem pregar a abolição de referenciais norteadores ou a falta de fé. Acredito na conscientização, no fazer com reflexão, no engajamento criativo pra a criação de possibilidades de vida e convivência. Trata-se de participação e auto-implicação.

Vemos um voto baseado na figura de um suposto ‘mito’, o desejo da volta do pai da horda, alguém que venha botar ordem no país e, inconscientemente, na própria vida. Uma demanda imatura e fantasiosa de não responsabilização pelo destino.

A liberdade das mulheres, a maior igualdade para negrxs, a oportunidade para pobres é vista por muitos como um perigo para sua integridade, seu lugar no mundo. Não conseguem lidar com suas sombras e criam inimigos externos, esperando que alguém possa exterminá-los para acabar com este conflito interno.

Estamos depressivos… encaramos nossa sombra coletiva.

Ficou explícito que brasileirx não tem tão bom coração assim, nem é tão tolerante, nem tão feliz, nem tão acolhedor, nem tão pacífico… como acreditávamos que fossemos.

Nosso ideal do que é ser brasileirx está estilhaçado.

Mas, na verdade, estávamos adormecidxs. O Brasil é um país que violenta e mata mulheres; o que mais extermina LGBTQs no mundo; a violência urbana mata mais do que guerra; cor da pele influencia diretamente destinos; educação e saúde estão longe de ser para todxs; a justiça tem lado e não é cega.

São 518 anos baseados em exploração.

A máscara de Zé Carioca quebrou.

Nossa democracia e instituições são tão frágeis que um presidente pode fazer um grande estrago no país. Diferentemente dos EUA, que mesmo tendo eleito Trump, este não consegue fazer o que quer.

Os movimentos sociais e as parcelas mais libertárias da sociedade fizeram grandes esforços, mas estes marcos ainda não conseguiram mudar estruturas importantes e nem tocar, no sentido de transformação, grande parte da população.

Tais avanços pareciam aceitos, mas, para muitos estavam sendo apenas tolerados. E, apesar dos discursos pautados no “politicamente correto”, as violências continuaram e agora encontram legitimação com a eleição de Bolsonaro.

Espero que este desvelamento da Sombra brasileira possa ser uma oportunidade de profunda tomada de consciência e transformações necessárias.

Referências:
– Jung, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vozes. 2013.
– Zweig, C. Abrams, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. Cultrix. 2012.

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
Email: juflorenciocs@gmail.com

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