[A MULHER NÔMADE] Arqueologia da Nuvem
Por Kelly Saura*
Ao último que fica é fadada a tarefa de limpar a sujeira dos outros. Retirar a gordura e o limo dos pratos, das panelas, da pia. Ler os pedacinhos de papel soltos displicentemente pelos cantos da casa. O recibo do fogão novo em cima da geladeira, a conta de luz sobre a passadeira da sala de jantar. A lista de coisas a fazer no ano novo que já passou.
Lavar a pilha de panos de chão sujos acumulados na área de serviço. Guardar as cadeiras de madeira dentro da casa. Retirar as roupas secas do varal. Recolher o lixo dos cestos dos banheiros. Separar o reciclável, jogar os restos de comida na composteira.
Como é estranho olhar pra roupa seca estendida no varal e não saber de quem é. São como bandeiras hasteadas, e quando bate o vento, você consegue ouvir sobre a demarcação daquele território por quem passou por ali.
Como é estranho olhar pra roupa suja e não saber de quem é.
O que resta para o último que fica é o trabalho da arqueologia de ler cada objeto, decifrar as histórias contidas em cada pedaço de matéria depositado ali. Olhar para o acúmulo de artefatos, fagulhas de histórias, tantas histórias e destinos que se cruzaram em diferentes tempos naquela mesma casa. Parece uma fotografia – registro congelado de passado.
É assim que se começa um museu?
Visconde de Mauá, Rio de Janeiro. Janeiro de 2016 do calendário cristão.
(este texto foi feito a partir do trabalho involuntário (eu acho que kármico), realizado no início e final das Residências de Verão em Nuvem – Estação Rural de Arte e Tecnologia.)
*Kelly Saura
mulher, nômade (Recife-Brasil, 1986)
artista visual, designer, curadora
desenvolve e colabora com projetos culturais e sociais de mídia-tática
articula tecnologias e linguagens do tempo
E-mail: kellysaura@gmail.com
Instagram: @saura.kelly