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‘A experiência do parto’, por Érico Andrade

Não me parece adequado tecer um relato de parto sem antes esclarecer dois pontos: a experiência fenomenológica do parto é inacessível aos homens e o exercício da paternidade é uma obrigação moral, ética. Nesses termos, as linhas que se seguem não poderão ser outra coisa senão o relato de uma experiência afetiva vivenciada por quem ao lado de sua companheira e graças a ela pôde imergir no extraordinário acontecimento que é a vinda de uma criança ao mundo. Comecemos. Será um começo um tanto filosófico, mas com a pretensão de servir de preparo para a vida, como parece ser, aliás, a missão da filosofia.

A associação do método socrático, a maiêutica, ao parto, é, sem nenhuma dúvida, uma construção masculina, mas não deixa de registrar o fato de que o parto é um evento árido, duro e tortuoso, vivenciado pelas mulheres que portam no seu ventre uma nova vida. Fazer filosofia é partejar, diria Sócrates. Quem faz o parto, claro, são as mulheres, assim como o filósofo não pare outro filósofo pela maiêutica. Notadamente, são as pessoas que se tornam filósofas, uma vez que o filósofo apenas facilita, por meio de questões, a reflexão filosófica, assim como as parteiras apenas facilitam, por meio de incentivos e técnicas, a gestante parir. Nós, homens, não parimos, mas podemos, assim como Sócrates, que estava junto àqueles que pariam a filosofia, estar junto de nossas companheiras. Aliás, devemos estar juntos àquela que é responsável por trazer a vida, após um longo período de preparo, ao mundo; por lançar à luz os primeiros gritos da vida. Compomos, com outras pessoas, uma rede de afetos para que a chegada, natural, da vida possa ser não tanto menos dolorosa, mas consciente de que a dor, a dor inimaginável e incontornável do parto, é o caminho trilhado pela vida para nos dizer o quanto marcante é o seu advento.

Só sente dor quem está vivo e só se vive graças a transformação da dor na força, própria da mulheres, de parir. São as mulheres que nos conduzem à existência e a elas não basta a gratidão; é preciso o apoio. E o quão lindo é estar ao seu lado em todos os momentos em que a vida começa a dar sinais que quer habitar o mundo e estar conosco com os seus braços tanto felizes quanto desordenados. A experiência da vinda de Caetano circula nos meus dias, horas, na distração cotidiana dos momentos em que a vida nos brinda com o ócio. Ela na verdade habita a minha pele com a marca daquilo que o tempo não apaga; a não ser quando o tempo resolve se apagar. Para sempre o corpo guarda na sua alma o que nos arrebata com a força poderosa da vida.

E é a vida que vai se movendo e com ela o corpo da mãe – Vanessa – que se prepara para lhe acolher e termina por também se mover: sinfonia. Quando o corpo da mãe se move: tudo passa a se mover; até o momento então em que não se distingui mais o movimento da criança daquele do corpo, agora, dilatado, da mãe. São os últimos momentos de uma simbiose sem qual a vida não vinga. São horas, foram horas, que espaçavam dores, nem sempre regulares e que prenunciavam uma data inesquecível de nossas vidas. Era preciso que as dores, sim as dores, pudessem ganhar um compasso, um ritmo para que Caetano dissesse ao mundo que a esperança é sempre um grito! Tem força. Força, aliás, capaz de espantar o seu irmão Heitor que numa tentativa insólita de compreender a dor de Vanessa, a quem ele acompanhava vigilante, trouxe uma paralelo, ainda sim distante de sua realidade, quando perguntou se a dor de Vanessa seria a mesma de uma criança quando ela é agredida. De fato, mesmo sem nunca ter sido agredido Heitor percebia a força das dores sem as quais o seu irmão, desde barriga tão amado, não poderia lançar-se ao mundo para nos alegrar com o seu choro e nos felicitar com os seus primeiros movimentos.

Essas dores foram paulatinamente, Vanessa poderia dizer, talvez, vagarosamente, ganhando ritmo. Heitor já não estava mais conosco. Era a sua vovó de afeto e mãe de Vanessa que chegara, Jane. A expectativa naturalmente crescia, mas ela não fora acompanhada na mesma proporção desejada das contrações. Era ainda necessário mais ritmo, leia-se; dor. Mais compassada, mas dor. E elas só vieram à noite, com a bolsa apresentando alguns sinais de ter sido levemente estourada e dando a entender que Caetano já não tinha tantas datas para vir. Estava muito próximo. Agora, meu presente de aniversário, permitam-me dizer isso, não atrasaria mais, no máximo ele viria logo depois, três dias depois para ser preciso.

Quando em nossa casa já estavam presentes as pessoas que compunham a nossa rede de cuidado (Rosinha, Tati e Maina) Caetano resolveu dar sinais claros de que estava perto. As dores, naturalmente, aumentaram e a sua dedicada mãe viu seu corpo se transformar numa região de dor intensa, quase insuportável, mas paradoxalmente desejada porque sem ela Caetano não poderia estar em nossos braços.

Eis que de última hora, devo dizer que em geral sempre se tem o “de última hora”, Caetano resolve se colocar numa posição difícil. O encaixe já não era perfeito e as contrações voltavam a ser espaças. Tudo muito difícil para a minha invariavelmente forte companheira Vanessa. Num esforço dela, agora agarrada a mim com todas as suas forças, conseguimos encaixar Caetano. Seria o último esforço em nossa casa porque no parto não há intervalos, não se pode recorrer a uma parada, por assim dizer regulamentar. É difícil mesmo respirar. A guerreira Vanessa precisava de uma força maior do que aquela que eu tentava lhe transmitir e com a qual ela aderia a mim com seus braços nos momentos mais delicados. A transferência para o hospital já não era algo distante. Daí, passou a ser iminente para que então se tornasse uma realidade. Fomos. A emoção do trajeto, o cuidado com os buracos, muitos buracos, sabemos, e a ausculta constante dos batimentos do nosso pequeno sonho, a ser compartilhado para sempre, se faziam presente, muito presente. Tudo parecia denso, intenso e forte.

Chegamos ao hospital. Trâmites burocráticos que aceleravam a nossa ansiedade, mas não o parto, ainda que Caetano estivesse a pouco dedos de sair do corpo acolhedor de sua mãe. Pequenos desencontros, mudanças de sala, roupas e, então, nos encontramos numa sala cuja penumbra nos dava o conforto necessário para a concentração e, com ela, as contrações, aceleradas, agora, com ocitocina, e compassadas num ritmo próprio do período que chamamos expulsório, mas que deriva do latim e significa literalmente: colocar para fora. Era a hora de Caetano sair. Afinal, a casa já era de Caetano, como dizia a música de Arnaldo Antunes, tocada tanto em casa quanto, por coincidência, no hospital no celular do médico. A casa é sua meu filho. O nome dessa casa é Terra. O teu planeta já queria sentir os teus gritos circularem. Nós, filho, já fazíamos morada na emoção. A tua mãe, sempre guerreira, fazia da dor uma aliada com qual ela te traria para os meus, agora já serenos, braços. Não tardou mais. Veloz. Foste velozmente para os meus braços para em seguida retornar, por meio deles, para o conforto da tua mãe que acolhia nos seus exaustos, mas firmes braços, o ser com o qual ela existe num só corpo: Caetano! Foram os teus primeiros gritos filho que fizeram de nossas lágrimas o testemunho do que a vida tem de mais especial, a saber: a capacidade de gerar vida e, sobretudo, afeto; numa palavra: amor. Te amamos!

Por Érico Andrade
ericoandrade@gmail.com

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