‘Sobre as armadilhas no caminho do terapeuta ou arteterapeuta’, por Sayuri Matsumiya
Em seu livro “O abuso do poder na psicoterapia”, lançado em 1987, o analista junguiano Adolf Craig presenteia-nos com reflexões preciosas a respeito do exercício profissional do médico, professor, assistente social e, principalmente, do terapeuta, voltando-se assim para profissões que se dispõem à bela e responsável missão de, em alguma instância, cuidar do outro. Ao longo de certeiras palavras compartilha com o leitor suas opiniões, construídas a partir da vivência pessoal e profissional, alertando sobre os perigos que rondam o fazer clínico do terapeuta e trazendo, de forma fluida e clara, alguns dos principais conceitos da abordagem junguiana. De maneira sincera e objetiva, alerta-nos sobre como “os membros dessas profissões de ajuda podem também causar enormes danos, devido a seu próprio desejo de ajudar”, citando exemplos e situações que continuam a se repetir até este exato momento pelo mundo afora, não só pelo fato de a relação terapeuta-paciente tratar-se de um tema arquetípico, mas, last but not least, pelo fato de que a Sombra é uma realidade que sempre acompanhará nosso caminhar, aos olhos dos junguianos.
Ao traçar um apanhado de situações, retratando armadilhas as mais ardilosas ao longo deste longo e sinuoso caminho, o autor chega a consolar o leitor que, após algumas páginas, já deve estar descrente da terapia como caminho possível para a transformação do paciente… e do terapeuta. Afinal, sua proposta com este livro é escancarar um tabu tão velado e muitas vezes veementemente negado pela tribo dos terapeutas: a sombra deles próprios.
Mas, como o precursor da abordagem, o próprio Jung, advertia sobre a exigência e fundamental importância de o terapeuta buscar seu próprio autoconhecimento sempre, Craig vem nos chamar com toda a sua vontade para que arregacemos as mangas e metamos as mãos na massa em que tanto desejamos que nossos próprios clientes se esbaldem… Até porque, como dizia o próprio Jung, como poderemos levar alguém até onde nunca sequer chegamos perto? Pode até ser que cheguemos junto com o outro, mas talvez o percurso seja mais longo e confuso, correndo o risco de tropeçarmos e cairmos em alguns (ou vários) buracos pelo caminho.
Eis então que, após relatar os riscos e as artimanhas do terapeuta para driblar o seu supervisor, se esconder atrás da sua teoria, status, experiência e ludibriar até o seu próprio terapeuta, Craig nos oferta uma nobre solução para os tantos perigos que rondam aquele que coloca o poderoso anel de terapeuta nos dedos…
E essa solução atende pelo nome de Amizade. É isso mesmo. Amig@s, espos@s, irmãos e irmãs, essas pessoas com quem mantemos uma relação desnuda, muitas vezes de amor e ódio, que são capazes de apontar erros nossos que nem nossos terapeutas conseguem muitas vezes achar de tão escondidos, mas com quem também nos sentimos muitíssimo à vontade para falar as coisas mais tolas… Sim, terapeutas precisam muito falar amenidades. O bom humor é um precioso antídoto para vários males, e como é bom quando podemos chorar de rir das piadas que nossos amigos fazem de nós mesmos!
Afinal, o que nos une aos nossos clientes, antes dos livros e supervisões, é a nossa própria humanidade. Quero deixar bem claro que com isso não desconsidero de jeito nenhum a importância desse investimento na profissão, em todos os níveis. Mas nunca, nunca se deve esquecer que, quanto maior for o acúmulo de conhecimento, maior é a sombra também. Nas palavras de Craig, “quanto mais o analista examina e segue os ditames do inconsciente, mais cego o analista se torna, apenas confirmando o que já sabe. Seu ponto cego o impede de ver as áreas sombrias decisivas de seu próprio ser; ou, caso as compreenda intelectualmente, seu autoconhecimento não consegue atingir suas próprias emoções”. Por isso é que “quando intensamente vivida – e sofrida – uma amizade pode salvar o terapeuta de inextricáveis envolvimentos com o seu próprio lado obscuro e destrutivo”.
Então se você é ou deseja ser terapeuta ou arteterapeuta, já deve ter escutado bastante o quão imprescindível é a sua terapia, supervisão e leituras. Mas não deixe também de escutar o que disse o Craig: cuide da amizade. Entenda que amizade não é ser o terapeuta entre os amigos. Não. Amizade é desnudar-se. É confiar, se entregar, amar e por vezes se abusar também. E se você acredita que não tem ou não precisa de amigos, é bom olhar para isso. Seus clientes e seu Self agradecem.
E lembre-se de uma grande verdade que dizia nosso querido Jung:
“Onde há poder não há amor, e onde há amor, não há poder”.
Sayuri Matsumiya é psicóloga junguiana e faz parte do Lumen Novum, espaço destinado à difusão da Psicologia Analítica e da Arteterapia no Recife. E-mail: sayuuuri@gmail.com
Caríssima Sayuri,
Parabéns pelo belo artigo!
Você traz reflexões muito profundas, sérias e absolutamente pertinentes. Voltadas para o trabalho do terapeuta, mas que ouso estender para a atuação de quaisquer profissionais de ajuda. Inclusive astrólogos.
Duas coisas me chamam a atenção, no seu texto.
Primeira: a frase “Afinal, o que nos une aos nossos clientes, antes dos livros e supervisões, é a nossa própria humanidade”.
Excelente!
Convida-nos a abdicar da noss posição de super-homens ou super-mulheres, em que, às vezes, o nosso ego (ou nossas Sombras…) nos coloca.
Segunda; a frase final, de Jung ““Onde há poder não há amor, e onde há amor, não há poder”.
Isso me remete ao eixo Touro – Escorpião, ou, mais diretamente, à dissensão entre seus astros regentes, Vênus (o amor) e Plutão (o poder).
Nesse sentido, peço-lhe licença para lhe apresentar um desafio.
Um das coisas que a prática astrológica, associada à experiência de vida, me ensinou é que onde há MEDO não pode haver amor. O amor é o oposto do medo, aliás, outro atributo associado ao planeta Plutão.
Porém, será que não há mesmo nenhuma chance de associarmos o amor e o poder?
Será o exercício do poder assim tão desprovido de humanidade que temos necessariamente que classificá-lo como oposto ao amor?
Não foi, por exemplo, Cristo, a mais amorosa personagem da História ocidental, também um homem de poder, ou seja, com elevada capacidade de transformar a realidade?
O que lhe parece?
Oi, Haroldo, quanto tempo!
Muito interessantes suas colocações, inclusive pontes com a astrologia!
Creio que amor e poder são providos e muito de humanidade sim… A frase de Jung que cito no artigo na verdade está traduzida de forma mais resumida… Jung a cita ao comparar as especificidades das teorias de Freud e Adler…Penso que a palavra “poder” aqui entra não em seu aspecto positivo e criador, mas em seu lado mais destrutivo, representando nas relações interpessoais, o desejo e tendência de dominar, de controlar o outro… Como na canção dos doces bárbaros, penso que a forma mais nobre do amor seria “amá-lo e deixá-lo livre para amar”… Acho que pensamos da mesma forma, então!
Abraços saudosos!!
Sayuri
Adorei a definição de amizade e o artigo!