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[GERAR ENTRELINHAS] No batente do coração: entre frevos, fardos e afetos

Foto: João Lin

Por Camylla Herculano*

“Garçom, aqui nessa mesa de bar / Você já cansou de escutar…”

A icônica musica de Reginaldo Rossi nos faz perceber que ele sabia das dores que não têm hora marcada pra aparecer. E talvez seja mesmo isso: no batente da vida, a gente segue, entre uma jornada e outra, tentando não perder o compasso do que pulsa por dentro. Porque o trabalho – esse fazer que preenche os dias e esvazia os sonhos, às vezes – tem mexido demais com a saúde da alma.

Trabalho é sustento, mas também é laço, lugar de troca, de criação. É na feira da Encruzilhada, na lida dos pescadores de Itamaracá, na dança do Cavalo-Marinho, que a gente vê a força criadora de quem acorda cedo e não esquece de cantar. Mas quando o suor vira silêncio, e o corpo já não dá conta de dançar nem o passo mais manso do maracatu, é preciso escutar. Escutar de verdade. Porque há cansaços que não se curam com folga nem com feriado.

A gente aprendeu que ser produtivo é quase uma forma de existir. Mas será que viver é só isso? Clicar, correr, render, subir metas, bater cartão, dar conta, dar conta, dar conta… Até quando? O coração não bate no ritmo do relógio de ponto. Ele precisa de pausa, de afeto, de riso solto, daquele “oxe!” que a gente solta quando a vida pede um freio.

“Recife tem encantos mil”, já dizia Rossi, e tem também um jeito de ensinar que a vida se renova na roda de ciranda, no batuque do maracatu, na reza cantada das benzedeiras. Há saberes ali – antigos, profundos – que lembram: cuidar da mente é também se lembrar do corpo, do tempo e da história. É resistir com poesia. É dizer “não” quando tudo empurra pra um “sim” forçado. É saber parar, sem culpa, pra ouvir o barulho do mar ou o silêncio de dentro.

Não é à toa que nas rodas de coco e nos terreiros cada gesto tem intenção. O corpo inteiro fala, sente, responde. Assim deveria ser também o trabalho: um espaço onde o ser humano – inteiro, com suas dores e alegrias – possa estar. Mas o que vemos, muitas vezes, é um atropelo da existência, um uso raso da potência das pessoas. E isso adoece.

Trabalhar não deveria significar se perder de si. A psicologia tem nos lembrado que saúde mental se constrói em rede, em vínculos, em escuta. E que não há protocolo que cure a solidão institucionalizada, a pressão velada, o desrespeito cotidiano. É preciso reinventar o jeito de trabalhar, sim. Mas, mais ainda, reinventar o jeito de viver junto.

Talvez seja hora de trazer mais poesia pros escritórios, mais pausa pros ambulantes, mais reconhecimento pros que não param nunca. E de lembrar, como cantava Reginaldo: “que a vida é bela, e eu fui acreditar…”. Que bom seria se todo trabalho lembrasse e nos fizesse acreditar nisso também: que a vida é bela – mas só se for vivida com dignidade, com espaço para o sonho, com saúde para sentir.

Entre um passo e outro, que a gente siga tentando. Porque há muito de resistência no simples ato de cuidar de si e dos outros. Há muito de futuro em cada corpo que dança, mesmo depois de um dia pesado. E há sempre uma nova ciranda esperando a gente na esquina – pra lembrar que viver vale, sim, a pena.

* Camylla Herculano é psicóloga, analista Bioenergética, recifense, pisciana, entusiasta de uma cultura pulsante, mestre e doutoranda em Memória Social, acumuladora de sonhos, ideias e memória.

A coluna GERAR ENTRELINHAS é escrita pelas parceiras e parceiros do Espaço Gerar - Psicologia, Arteterapia e Bem-Estar. 
Mais informações sobre o espaço e equipe, neste link: https://www.gerarterapias.com.br/

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