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‘O individualismo motorizado’, por Érico Andrade

(Texto publicado originalmente em: http://direitosurbanos.wordpress.com)

Se um grupo de cientistas propusesse uma técnica inovadora no Brasil para melhorar a mobilidade das pessoas, mas que seus usuários morreriam numa escala de 40.000 pessoas por ano, será que adotaríamos, sem hesitar, essa técnica? Dificilmente a resposta poderia ser peremptoriamente positiva. Contudo, quando anunciamos que essa técnica é o carro ou quando as pessoas percebem que se trata do carro logo as primeiras palavras se dirigem em defesa desse meio de transporte. Um primeiro argumento: a culpa do mau uso da técnica não pode ser responsabilidade da própria técnica. Certo. Entretanto, o potencial mortífero do carro deveria exigir um treino exaustivo dos condutores que está longe de ser contemplado pelas aulas na autoescola. Acidentes com carro matam mais do que assassinatos com arma de fogo. A habilitação para dirigir um carro deveria ser no mínimo análoga à habilitação para se portar uma arma, pois embora o carro, diferentemente da arma, não tenha sido feito para matar, ele se torna uma arma na mão de várias pessoas. Com efeito, dificilmente estaríamos dispostos a passar por um longo e árido processo para ter acesso à habilitação para dirigir porque não conseguimos imaginar a nossa vida sem carro. A questão que gostaria de discutir aqui é por quê?

Alguns argumentos são levantados para justificar o uso do carro. Um deles é a economia do tempo. Esse argumento é questionável dada a grande dificuldade de se mover com o carro em cidades grandes como Recife. Outro argumento: o carro é um meio de transporte mais seguro do que o transporte público. Outro erro: todas as estatísticas mostram que os carros são mais assaltados do que os ônibus. Caso a segurança se referia aos acidentes, é notável que mais pessoas morrem nos acidentes com carros do que no transporte público ou na bicicleta. Outro argumento é que o carro é mais confortável. Se por um lado, isso pode ser verdade, por outro, os usuários de carros levam, em geral, uma vida mais sedentária que pode acarretar problemas de saúde ao longo prazo. Há ainda o argumento que recorre à tese de que o carro é mais prático e permite levar pessoas que têm dificuldade de locomoção. Ainda que isso seja verdade, os condutores de carro não estão o tempo todo socorrendo alguém ou levando alguém com dificuldade de locomoção. Ademais, o taxi poderia resolver perfeitamente esses casos extremos. O último argumento é que o transporte público é deficiente. Esse argumento esconde, por um lado, o comodismo de não exigir a melhora do transporte público à proporção que se adota a solução do salve-se quem puder que se verbaliza na máxima: compre logo o seu carro. Por outro lado, ele é parcialmente verdadeiro, sobretudo, nos bairros mais nobres onde a oferta de ônibus é razoável e se aproxima de países como França e Inglaterra.

Ainda que seja compreensível a relutância das pessoas para pelo menos diminuírem o número de carros e que elas tenham direito de usá-los, permanece uma questão ainda mais grave, a saber: o custo social e ambiental do carro. Poucas pessoas discordariam que seria melhor deixar para os seus filhos um mundo menos poluído ou que gostaria de viver num ambiente urbano menos hostil. O uso do carro, contudo, tem um forte impacto ambiental porque promove a poluição visual, auditiva e respiratória. Ele também expressa a irracionalidade do individualismo: um transporte de duas toneladas para transportar, em vários casos, uma única pessoa de oitenta quilos. Além disso, o gasto energético e ambiental para a produção do carro é exorbitante. Os impostos não recuperam esses gastos, pois o manejo e a exploração de recursos para a produção do carro é impactante, talvez incontável e não dá para revertê-los num curto prazo. Ademais, existe uma forte emissão de CO2 derivada do uso do carro. Resta saber se não é a hora de experimentar, pelo menos uma vez, outras formas de mobilidade que onerem menos nosso planeta e a nossa vida ou será que vamos permanecer naquilo que chamo falácia da esperança: um dia inventaremos uma técnica que irá solucionar todos os nossos problemas.

Érico Andrade
Doutor em Filosofia pela Sorbonne
Professor Filosofia / UFPE
ericoandrade@hotmail.com

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