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‘O custo da velocidade motorizada’, por Érico Andrade

ericoandrade@hotmail.com

Texto em homenagem a Liliane Leite e Roberto Silva mortos nas últimas semanas em Recife

Quilômetros de avenidas. Ruas tomadas como vagas para estacionamento. Estacionamentos que ocupam os espaços das casas e dos edifícios. Não há dúvida que os espaços das cidades são planejados para os carros. Mas quem custeia esse sonho? As cidades devem ser planejadas em função desse transporte individual?

Os gastos públicos com a política de valorização do uso do carro – a carrocracia – se estendem de diversas formas. Bilhões são gastos com o tratamento hospitalar das vítimas de acidentes que se ramificam em bilhões gastos pela previdência social para assistir as famílias e a própria vitima de acidentes, que se ramificam ainda em milhões gastos no uso da força policial para as atuações e resgate de vítimas, assim como para o translado dos veículos envolvidos nos acidentes. Milhões são gastos com o judiciário para dar conta de uma quantidade sempre crescente de processos relativos aos acidentes de trânsito. Bilhões são gastos anualmente para a construção de mais espaço para carros (viadutos, novas estradas). Centenas de florestas (no caso de Recife, mangues) são devastadas para a passagem de novas estradas. Rios passam por um processo de assoreamento para que mais estradas e ruas sejam construídas. Bilhões são gastos nos hospitais para curar doenças respiratórias ligadas à emissão de CO2 dos automóveis. Parte importante dos gastos do Estado, mapeados pelo IPEA, é dedicada ao direito dos indivíduos de se locomoverem por meio de carros (direito, aliás, que materialmente é impossível que todos possam desfrutar). Ou mais radicalmente: o estado molda a cidade e estrutura seus gastos em função dos automóveis. A receita com os impostos sobre eles está longe de compensar os bilhões gastos para manter a carrocracia. Assim, todas as placas sinalizam a mesma ideia: a cidade é feita para os carros.

Não resta dúvida, o automóvel individual é a prioridade absoluta das políticas públicas que são capazes de diminuírem os impostos sobre a sua produção para aumentar o seu consumo, mesmo que já exista um número inacreditável deles nas ruas. Nada pode atrasar o desenvolvimento e a produção dos carros. Os governos sabem disso e obedecem ao grande lobby da indústria automobilística. Assim, a pressa dos que andam em automóveis individuais e o poder de barganha da indústria justificam uma perversão das políticas públicas cujas principais características são as seguintes. Por um lado, a omissão representada pela falta crônica de sinais para pedestre, pela falta de redutores de velocidade e pela falta de punição sistemática aos infratores que dirigem falando ao celular, sem sinalizarem corretamente, e estacionam os seus automóveis como querem nas vias públicas e calçadas. Por outro, por ações como a retirada de ciclovias e o investimento nas pistas em detrimento do investimento nas calçadas.

Considerando o enorme custo social e ambiental agregado à produção e ao uso do carro, as ações e omissões dos governos ratificam a tese de que os automóveis individuais não precisam partilhar o espaço público com ninguém. Ou seja, a concentração de políticas públicas no uso dos carros gera a expectativa de direito de que os automóveis individuais são os proprietários da rua. Se todos os sinais das políticas públicas indicam que a cidade é dos carros, pouco adianta fetichizar o álcool como a causa dos acidentes (é impossível demonstrar a relação causal entre tomar uma cerveja e colidir o carro), pois o que mata é a convicção tácita de que as ruas são dos carros, representada pela alta velocidade tomada como regra pela maioria dos que o usam. Acidentes com veículos com mais de 60 quilômetros por hora são fatais para os ciclistas e pedestres. Dirigir muito acima dessa velocidade nas cidades é assumir o risco de matar, independente da quantidade de álcool ingerida. Será muito difícil que os que usam carro sistematicamente entendam que as ruas não pertencem apenas a eles quando todo espaço urbano foi pensado e projetado em função dos automóveis individuais e quando a omissão do Estado é onipresente. A maior causa de acidentes é a sensação, financiada pelos governos, de que as cidades foram feitas para os carros e que os pedestres e ciclistas são incômodos obstáculos à sua velocidade.

Érico Andrade  é Doutor em Filosofia pela Sorbonne / Professor de Filosofia – UFPE .

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