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Lula Côrtes e Cristiano Jerônimo pintando a poesia

Cristiano Jerônimo é poeta, compositor e jornalista

 

No aniversário de cinco anos do Flores no Ar, no dia 26 de setembro de 2014, recebemos um lindo presente do jornalista e artista Cristiano Jerônimo. Ele disponibilizou para publicação no nosso site a obra ‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’, uma série de poemas criados por ele e ilustrados pelo grande Lula Côrtes. Confiram abaixo como aconteceu a criação da obra e, em seguida, deliciem-se com os poemas e ilustrações!

 

 

Poesia e pintura: Recife em pesquisa e ritmo

| Por Cristiano Jerônimo |

‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’ é um livro lançado em 1999, mas escrito de 1993 a 1996, essencialmente, por se tratar de um livro temático, com a recorrência às referências das mais variadas nuances da capital pernambucana. Vim do sertão morar na capital aos três anos de idade. Naqueles tempos, início da década de 1980, parece que as coisas eram bem mais complicadas do que hoje, do ponto de vista socioeconômico, ambiental e de desigualdades mais visíveis tipo os “dormidores” da rua do Sol, próximo à Rua Nova, por ali pela Ponte de Ferro. O centro do Recife, felizmente, foi ficando menos deprimente pela consciência popular que conheceu mais os nossos direitos e fazem questão de exercê-los. Nas ruas, nas barricadas, para exigir um pouco de respeito e os mínimos direitos, como o à vida.

Escrever um livro sobre a minha impressão poética das disparidades, do belo e do feio, de uma cidade muito importante, o Recife, foi uma decisão tomada em 1993, após o lançamento do livro ‘Eu’s no Azul do Infinito’ (Editora Universitária – UFPE). Havia iniciado o curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e estava no primeiro ano. Até hoje acho que o meu primeiro livro foi um fracasso de vendas, mas foi muito mais importante do que isso. Foi o meu primeiro grito suave. Desangustiado. Parido.

A Biblioteca Central da UFPE era o meu esconderijo secreto todas as tardes dos dias da semana. Ia nas fichas catalográficas e escolhia o livro que eu ia ler nas bancas de estudo, já que havia me desvinculado do curso de Letras e não podia pegar emprestado, levar para casa. Lembro do livro que mais me chamou a atenção – pode ser até o que mais gostei: ‘Arredores do Recife’, de F. A. Pereira da Costa, um livro que faz um resgate do Recife, do século XVI ao século XX. O autor, por sinal, foi o fundador da Academia Pernambucana de Letras (APL). O que chamo de pesquisa que fiz se estendeu até o Museu da Cidade do Recife, dentro do Forte das Cinco Pontas. Não li João Cabral de Melo Neto, porque sabia que ia ser influenciado. Tenho que admitir. Também estudei Recife e Seus Bairros, Gilberto Ferrez, e um livro sobre a passagem de Charlis Darwin pelo Recife, o qual não lembro o nome do título.

No museu, a coleção de fotos, litogravuras seculares, pinturas; é muito vasta. Lá cheguei a conclusão que o Recife central sofreu cinco aterros até chegar à área de continente expandido que apresenta hoje. A destruição de ruas e casarios para a construção da Avenida Guararapes. Uma igreja secular foi derrubada. No Recife Antigo também havia a igreja mais cultuada do local, voltada para os navegantes que chegavam de viagem e aos que embarcavam. Ficava na beira do cais, próximo ao antigo Terminal de Passageiros. Não existem nem mais ruínas.

PARCERIA COM LULA CÔRTES – Mas o mais gratificante do que já se tratava de anos é que, ao apresentar todos os poemas para o amigo e parceiro Lula Côrtes, ele pegou da minha mão os originais que eu estava lendo para saber a importante opinião dele sobre o livro, os poemas, e disse: “Eu vou fazer umas ilustrações iradas. Bem diferentes. Deixe comigo”. Meus olhos brilharam, porque estava ali agregado um ser artístico com o qual eu aprendia o tempo inteiro, embora, se descuidasse, desaprendia também. Lula me surpreendeu com dez monotipias (equivalentes a dez poemas que as inspiraram), feitas com desenho de espátulas com nanquim sobre superfície de vidro. Ele desenhava as figuras ao contrário para que quando fosse imprimir, manualmente, num papel que ele mesmo reciclava, a imagem ficasse em positivo. Os resultados eram maravilhosos. E a textura dos desenhos preto e branco ficou maravilhosa. Ele me revelou que nunca havia feito essa mistura nem usado essa técnica antes. Não fiquei surpreso.

 

Vamos à arte!

Recife de ruarecife de rua
vagueia um menino qualquer
qualquer rua…
matuta qualquer menino
vidrado na lua…

sobre a cidade
de água indecisa,
sob a verdade
crua e concisa
repousam as asas
da contradição:
do que é da terra de Deus
e que é de um mundo de cão.

um rebanho de bichos do mato
…meninos…
…cidade…mata…
…MENINOS…

 

A lama enrustida
a lama enrustida
atravessar o rio da vida
e a história da vida molhar;
pular de uma ponte comprida
e na lama da vida nadar…

compreender a lama o centro
e no centro da roda rodar;
desvirginar o segredo do tempo
e no vento da vida voar…

mergulhar no canal de entrada
no bueiro da esquina entrar
e ao sair, na bacia do pina,
pelo dique afora andar…

de um forte, o progresso
(referindo-se ao forte das cinco pontas
e ao cais José estelita)

havia um forte
há mais de cem anos atrás
onde um rio e o mar
formavam o cais.
– arrecifes de formas
concretas
não morrem, jamais.
Mas ali onde havia um
mangue,
hoje são plataformas gerais;
e o câncer urbano
propaga-se…
…cada vez muito mais.
assim, bosques indecisos
vagueiam sobre um passado
esquecido.
enquanto a forma arquitetônica
de outrora é substituída pelo caos,
o que agora os homens
chamam indecentemente de progresso.

 

Olhem agora a contracapa do Recife
olhem agora
a contracapa do recife,
aquilo que escondem de ti
sob o arregalo dos teus olhos
assustados com os curumins do “mau”
saídos dos esgotos marisíacos de sal…

 

 

suicídio ao cais
surgia o coletivo
e ele descia.
meio claro chuva,
meio dia.
Absorto entendia
que dobrava uma esquina fria,
até a ponte que subia
a guararapes…
o jornal de ontem,
lia o diário, que esquecia
e atordoado ele seguia…
ele chorava, ele sorria.
cinco minutos
em cada praça
se despedia…
na 1º de março
sem companhia…
prosseguia, ainda,
a marquês de Olinda,
e, jogando-se do cais,
no mar ele morria…
(quantas coisas
o marco zero não presencia…)

Dos mangues
dos mangues
eu sou da terra dos mangues,
dos sangues que cobrem nossos contraditórios asfaltos…
dos grupos que exalam o maracatu lá dos altos.

eu sou do lado urbano,
das retas e contornos dos prédios
que presencial ou acabam o tédio
da arquitetura da cara do povo.

eu sou do lado rural,
das árvores seculares e florestas vivas,
das cerâmicas da várzea de francisco brennand.

 

Menina de cais

menina de cais
uma mariposa
de cais,
gás…
aquática
cinemática.
movimentadamente
estática…
uma menina
que vagueia
o cais de zé
mariano, apolo
e santa rita.
presa ao cais
da alfândega
com seios contrabandos,
seu bando:
que bando?
uma prostitutinha
de cabelos de mangue,
uma menina de rua
é a nossa beleza;
brasileira Veneza…

 

Recife, a tua carne

recife: a tua carne
a tua carne é irrigada
pelos canais e rios de lama
além dos arbustos que encobrem
os sóis que refletem a gente.

o teu horizonte incerto é curvo
nas retas esquisitas da tua ilha do leite,
a tua ilha do retiro, joana bezerra,
um tiro nos coelhos
tuas ilhas…armadilhas…
são tuas veias dividindo teu tecido,
tua pele de lama, em tua cama me deito.

teu horizonte correto é reto
tanto quanto também incerto
e tuas águas, inevitavelmente, correm para o mar
nos corrupios esguios das mágoas que não vamos chorar.

teus pássaros turvos
os uivos noturnos
boêmios diurnos
mistérios que me fazem encontrar…

atlântida nem Veneza,
recife beleza,
paraíso infernal.
até o galo sai antes da aurora
na hora do carnaval…

 

Pontes

pontes
pontes, por onde andas?
sei que durante tantos anos
não permanecestes parada…

ponte, por onde falas?
sei que, apesar de muda,
não te resumes calada…

ponte, por onde nadas?
porque, apesar de morar neste rio,
nunca morrestes afogada…

ponte, por onde começas?
ponte, por onde terminas?
eu só sei dos ensinamentos
que tua travessia me ensina.

 

 

satisfação
(a antiga rio branco)

que pressa e risos
de um lado a outro das ruas,
das meninas vestidas
que, na verdade, são nuas.
elas vendem beijos e abraços,
pedaços de noite sem emoção.
anseiam, ao passo que abominam
o cansaço das noites condenadas
à prostituição…
talvez sim, talvez não
alguém possa satisfazer mecânica sua falta
e a sua determinação de se vender infeliz,
numa vibe de que qualquer trocado torna alguém mais feliz…

E ela diz: – levando comigo, freguês, seus segredos e ilusões,
Das quais tua alquimia solitária
Não te traz satisfação,
Levo tanta a maçã quanto o pão!

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