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Enxergar, olhar e ver

Por Carlos Carlos
ccbotijas@gmail.com

Passei anos convivendo com uma séria limitação visual que tem como característica uma intensa fotofobia. Nada que me impedisse de manter a rotina boêmia e suas investidas noturnas na cultura etílica. Ocorre que, com o tempo, o problema evolui para a cegueira total, o que cheguei a experimentar no início desse ano.

Um quase cego torna-se extraordinariamente ágil em gestos simples e coisas corriqueiras, se estiver confiante. Dedicaria  todo um texto sobre os artíficios e condicionamentos que permitem a sobrevivência de um deficiente, apesar da dificuldade que ainda sinto para escrever com alguma qualidade, em todos os sentidos, depois de alguns anos sem conseguir ler um artigo sequer.

Definitivamente, não é “igual a andar de bicicleta”, estou voltando aos poucos, mas agradeço a Deus por estar hoje escrevendo sobre como sobrevivi, andando só de bike pelas ruas do Recife, produzindo e vendendo meus livros em um perímetro próximo a casa. Isto, restrito à minha capacidade de memorizar os buracos do caminho, o que não evitou de eu tomar um ou dois tombos sérios em que um perfeito rolamento no asfalto, certa vez, me salvou. Talvez eu deva minha vida aos anos de ginástica de solo na adolescência, mas a bicicleta, acredite, nunca mais foi a mesma.

Não obstante essa natural capacidade humana de adaptação, depois de eu já ter recuperado a vista cheguei a sentir pânico ao demorar para encontrar a chave de um cadeado. Desacostumado a usar os olhos, eu não conseguia decidir rapidamente entre apalpar, seguir uma sequência  decorada, intuir ou simplesmente visualizar o molho e separar a chave. A ansiedade era igual a quando comecei a perder a visão e errava o troco, não visualizava alguém que me cumprimentava ou quando me demorava em qualquer urgência diurna, ao que passei a me treinar e afinar os meus sentidos com vários mecanismos de compensação, em um processo paulatino.

A recuperação, porém, foi rápida. Em poucos dias eu já enxergava normalmente por um dos olhos, o mais grave, que estava totalmente cego havia quatro anos, o que já revelava uma nova perspectiva do mundo pra quem há muito não disstinguia um carro dez metros á frente numa manhã de sol. Após essa primeira cirurgia, na verdade, em questão de horas eu já estava vendo, apesar das restriçôes intrínsecas à operação, feita com extrema habilidade pelo Dr. Fernando Gantois, que acompanhou tudo de perto até restabelecer a visão normal de meus dois olhos, ao longo de dois agraciados meses. Tratava-se de uma catarata do tipo subcapsular posterior.

Talvez para muitos, parecesse apenas um sintoma de baixa auto-estima eu não ter me tratado logo, mas a conjuntura que aqui pretendo compartilhar levava-me a ver essa doença como algo para eu entender de mim, para me ver por dentro e, talvez, clarificar uma visão das coisas que eu supunha existir além da superfície, além de um tipo de entendimento que nos cega em meio às inevitáveis contradições da existência. Assim, deixei-me mergulhar em um torpor que me levasse além dos condicionamentos em que nos dividimos para nos sentir somando. Buscava eu um tipo de compreensão das coisas, algo sobre o que gostava de falar desde a infância, mas para o que não estava preparado e talvez jamais esteja, o que também não me impede de continuar falando dessas latências mesmo que, à primeira vista, eu não seja entendido.

Não tenho mais como pensar que é simples coincidência, quando a natureza corresponde-se com alguém em níveis absurdamente lúcidos – o que não é privilégio de ninguém, pois vivemos todos em uma sintonia que, se quisermos, podemos perceber -, a ponto de eu me desconsertar com minha (nossa) condição humana atual ao me deparar com a miséria que nos cerca e mal conseguimos ver, como se precisássemos ser cegos ou ficar embrutecidos pra sobreviver, levando-me a crer que estamos mesmo em algum tipo de transição em nossa forma de interagir com o universo.

Na verdade, acho mais interessante mesmo falar disso na linguagem universal da arte, em poesia, literatura… Mas aí é que o bagulho fica doido, como diz a galera que precisa mais de luz. É que, há coisa de uns quinze anos, eu comecei a escrever frenéticamente um conto futurista terrível e instigante, como muita coisa que já vi. Este, localizado na cidade de São Paulo que estava em ruinas, na casião, assim como outras do Brasil, atingidas na deflagração de uma guerra nuclear inesperada. Assim começa este conto romanceado em que, como tenho falado para algumas pessoas, pelo menos na parte que me toca, mais uma vez a vida tem repetido a arte.

Nessa história que só esboçarei o prólogo, um espião brasileiro estava na Europa com a missão de descobrir o verdadeiro distribuidor de uma droga desenvolvida numa universidade paulista. Era uma substância que, em princípio, teria a propriedade de impedir os efeitos da radiação. Já se sabia da distribuição em larga escala dessas pastilhas de descontaminação nuclear pelos países do leste europeu. Seu criador havia desaparecido e, certamente, estaria por lá.  Enquanto isso, nesse Brasil dos anos 2030 (pelo menos no original do conto) em meio ao caos generalizado, já havia uma população imensa de mutantes.

Bom, nosso espião volta sem completar a missão e sem descobrir o paradeiro do cientista, mas traz consigo um carregamento dessas pastilhas. Ele vem com a  incumbência de ajudar algumas pessoas e voltar a cuidar de sua família, mas descobre que terá que criar sua filha, Ana, sozinho, pois a mãe teria morrido misteriosamente assassinada com ela em seus braços, ainda aos seis anos de idade, a qual, também misteriosamente, havia sobrevivido e se encontrava sozinha e a salvo em sua casa. Esses fatos acontecem no mesmo dia em que seu pai estava voltando da Europa, impedindo assim que Ana ficasse abandonada. A partir daí, ele se manteria incógnito no Brasil, embora que sua relação com as agências de inteligência houvesse já se dissolvido espontaneamente, assim como o próprio governo, que havia se tornado um rudimento de organismo politico a mercê do assistencialismo internacional. No entanto, ele queria ainda encontrar os dirigentes que o haviam enviado para aquela missão, para esclarecer algumas coisas.

Nos primeiros dias de convivência, literalmente se escondendo num cubículo revestido com chumbo sob os escombros do Viaduto do Chá, Ana e seu pai ouviram a explosão de um artefato radiativo a quilômetros de distância, quando a menina abriu uma janela do tipo basculhante para ver o que era e foi atingida nos olhos por uma luz que entrou pela pequena fresta horizontal.

Assim começa A História de Ana, uma mutante que, embora seja cega durante o dia, enxerga normalmente no escuro,  poder e deficiência ao mesmo tempo que só aflorou na fase adulta, mas muito lhe ajudou a sobreviver depois da morte precoce de seu pai, assassinado por mutantes que tentavam lhe roubar um alforge dessas pastilhas de descontaminação nuclear, artigo muito cobiçado pelas elites alucinadas da época, que negociavam qualquer coisa, inclusive escravos, prática comum onde até comida era moeda de compra de gente, por uma sacolinha com essa droga apenas preventiva e de efeito duvidoso. Assim, Ana pôde libertar familiares seus e pessoas amigas de seu pai.

Além de um grande estoque das tais pastilhas, considerando-se também o treinamento em lutas e armas que seu pai houvera lhe proporcionado, pode-se imaginar o poder de sobrevivência dessa personagem, embora que precisasse muito – devido a sua beleza física e a própria condição mutante em um mundo extremamente hostil – se manter em uma vida totalmente solitária.

Interrompi o entusiasmo em publicar isto porque, de repente, a história caiu em um lugar comum que pretendo talvez um dia resolver, mas não podia imaginar no quanto eu ainda iria pensar na História de Ana. Algo que me dissuadiu também de continuar o projeto, foi o fato de um amigo que desejava criar as ilustrações dos personagens ter sido internado após um laboratório de criação. Ele tem um histórico de esquizofrenia e, segundo um outro amigo em comum, a causa do internamento teria sido o frenesi que envolvia o conto e a nossa produção, que eu nem achava tanto. Não imagino o que se diria de Lost ou 24 horas, que ainda não havia.

Ainda rebuscando o tema das  sincronias, ao final do ano passado, no Mercado da Boa Vista, ao passar pelo meu amigo Jonathan Rabêlo e corresponder com frieza ao seu aceno, por não tê-lo reconhecido a menos de dois metros de mim, ele perguntou o que havia. Foi quando me aproximei, então com verdadeiro entusiasmo, mostrei o olho direito esbranquiçado e falei do meu problema, ao que ele começou a falar umas coisas que eu nem atinei, de imediato, no que realmente estava pra acontecer.

– A gente vai resolver isso rápido! Tens o cartão do SUS?

– Não tenho nem carteira de identidade.

– Vamos resolver.

Depois, não parou mais de me ligar pra acompanhar cada movimento. Foi o pontapé inicial.

Tudo e todos necessários foram surgindo para, em dois meses, eu estar enxergando normalmente. Obrigado, irmão!

Obrigado também ao meu pai, a minha mãe e a toda minha família, cuja assistência foi essencial!

Obrigado, Marta Braga!

Obrigado ao Alexandre Saad que, ao me ver providenciando exames, terminou por me levar a uma clínica onde tudo começou a acontecer imediamente, graças à intervenção do Dr. Fernando Gantois. Minha imensa gratidão.

Obrigado a Enaile, que também me estimulou a escrever esse relato.

Obrigado também a Luciana Rabelo, que me convidou a escrever esse texto para o Portal Flores no Ar, e aos leitores que tiveram paciência para lê-lo. Que Deus os cubra a todos de bênçãos. Amém.

Carlos Carlos

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