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‘Distanciápolis’, por Marcelo Mário de Melo

Distanciápolis é um país especial que você visita sem precisar viajar, cruzar fronteiras, devorar estradas, singrar mares, voar nos espaços. Também não é necessário fazer despesa com hospedagem e manutenção. No seu dia-a-dia de sempre, e sem sentir, você pode estar permanentemente presente em Distanciápolis. Um grande contingente humano já vive assim. A marca distintiva de Distanciápolis é exatamente esta. As pessoas que o povoam não têm consciência da sua condição de habitantes.

A migração para Distanciápolis é lenta. Pouco a pouco vamos cortando a percepção das coisas e das pessoas próximas – principalmente das pessoas – e mergulhando nas ondas vazias do outro país, transportados a uma redoma em que as coisas que vêm dos outros não nos afetam. E quanto mais nos anestesiamos, mais mergulhamos nessa nova dimensão. No início damos só umas fugidinhas de fim de semana ou de férias. Depois as viagens ficam mais freqüentes e passamos a viver a maior parte do tempo fora, nos territórios de Distanciápolis.

Há uma grande diferença entre o método brechtiano do distanciamento e a atitude mental da migração a Distanciápolis. Brecht propunha o distanciamento como uma espécie de recuo para se divisar melhor o conjunto da situação, assim como alguém que se põe num ponto mais alto para olhar a paisagem e ter uma melhor noção do conjunto. O resultado final do método brechtiano é provocar nas platéias a consciência crítica ante as engrenagens da dominação social e política.

A passagem a Distanciápolis é diferente na essência. É lenta, leve, sibilina, insidiosa, imperceptível, hipnótica e anestésica. É névoa envolvente que obscurece a vista e enovela a mente. É fio d’água que vai formando um rio sem que se o perceba. O habitante de Distanciápolis vê as coisas passando na sua vida como quem está alheio numa conversa, a cabeça voando noutras paragens. Ou como alguém que entra num salão com a orquestra tocando, liga o seu walke-men, coloca os fones nos ouvidos e passa a dançar solitário em outro ritmo, ignorando os circunstantes.

Muitos caminhos conduzem a Distanciápolis. A convivência comezinha. O excesso de trabalho. A rotina sufocante. Os grupos tirânicos. A falta de lazer e de amigos. A fuga de si. O medo das coisas novas. A roleta do imediatismo. A insolidariedade. O isolamento em torres. A humanofobia e assemelhados.

É preciso encontrar os caminhos para trazer à convivência normóide aqueles que se evadiram para Distanciápolis em nuvens de alheamento. Uma tarefa difícil, porque, como o câncer, na maioria dos casos, só se descobre a doença quando ela já está num alto nível de impregnação. Daí a necessidade de uma política de prevenção, que identifique os riscos e os indícios e exerça uma ação profilática.

O desafio é muito grande, porque as engrenagens da vida atual só favorecem os fluxos migratórios para Distanciápolis. E mesmo que não se trate de um mal de identificação recente, ainda são limitados os conhecimentos acerca dele. Por tudo isto, muito cuidado. Você já pode ser um habitante cadastrado de Distanciápolis, sem o saber. É bom conferir.

Marcelo Mário de Melo é jornalista e poeta.
E-mail: marcelomariodemelo@gmail.com

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