[A MULHER NÔMADE] Conversa com a pedra
Por Kelly Saura
Bato à porta da pedra. – Sou eu, deixa-me entrar. Quero penetrar no teu interior, olhar ao redor, prender-te como a respiração.
– Não tenho porta. – diz a pedra.
Bato à porta da pedra. – Sou eu, deixa-me entrar. Venho por curiosidade pura. A vida é a única ocasião para mim. Não tenho muito tempo para tanto. Minha mortalidade deveria te comover.
– Sai. – diz a pedra.
Bato à porta da pedra. – Sou eu, deixa-me entrar. Não busco em ti um refúgio para a eternidade. Não sou infeliz. Não estou desabrigada. Meu mundo é digno de retorno. Vou entrar e sair com as mãos vazias. E como prova de que realmente estive presente, não vou mostrar nada além de palavras às quais ninguém dará fé.
– Sou hermeticamente fechada. – diz a pedra. Mesmo quebradas em pedaços vamos ficar hermeticamente fechadas. Mesmo trituradas em grãos não vamos deixar ninguém entrar.
Bato à porta da pedra. – Sou eu, deixa-me entrar. Não posso esperar dois mil séculos para entrar debaixo do teu teto.
Bato à porta da pedra. – Sou eu, deixa-me entrar.
– Sou de pedra. – diz a pedra.
* editado do poema Conversa com a pedra, de Wislawa Szymborska.
Kelly Saura
mulher, nômade (Recife-Brasil, 1986)
artista visual, designer, curadora
desenvolve e colabora com projetos culturais e sociais de mídia-tática
articula tecnologias e linguagens do tempo
E-mail: Kellysaura@gmail.com
Instagram: @saura.kelly