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[CARCARÁ TAROT] A carta d’O Diabo, o corpo e a espiritualidade

| Por Aristeu Portela Jr* |

Muito antes de sequer iniciar a escrita deste texto, a carta do arcano número 15 do tarô, O Diabo, rondava minha mente com persistência. Não saberia precisar nenhuma razão lógica para isso; apenas minha imaginação insistia em vagar nas conhecidas semelhanças entre a carta, conforme ilustrada por Pamela Colman Smith, e outros arcanos maiores do mesmo conjunto.

Por que, por exemplo, o Diabo repetiria o conhecido gesto, presente também na carta do Mago, em que uma mão apontada para o céu e outra para a terra simboliza o princípio hermético de que “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo”? Ou seja, de que há uma unidade, uma correspondência entre o plano “terreno” e o “divino”, entre o micro e o macrocosmo? Ou ainda: por que essa figura, que na iconografia cristã simboliza os males, danações e tentações, partilha uma composição tão semelhante com a carta do Hierofante, conhecida em certos tarôs como ‘O Papa’? Ambas as figuras estão numa posição central, seguram objetos de poder com a mão esquerda e, com a direita fazem um gesto de benção perante dois sujeitos à frente. Qual a ligação possível entre o mediador institucional dos planos divino e terreno (O Papa, O Hierofante) e o seu “adversário” (pois esse é o significado da palavra “Satanás” em hebraico)?

No tarô, um dos significados possíveis da carta do Diabo remete a certas forças e condições de aprisionamento e opressão. Mais especificamente, de prisão na existência física, dos sentidos, dos prazeres que aferimos a partir do nosso envolvimento corporal no mundo – usualmente, a carta se refere à dimensão sexual da vida, mas podemos estendê-la para englobar todos os prazeres sensoriais. O que me intrigava, ao pensar nessa carta, era justamente essa associação entre o corpo e o prazer como possíveis fontes de aprisionamento, como obstáculos ao reconhecimento da dimensão espiritual da vida e a consequente busca de realização pessoal apenas no plano material. Poderia haver, nessa visão, ecos da perspectiva ocidental que contrapõe corpo e espírito, vistos como âmbitos separados da existência humana?

Com essas questões percorrendo minha mente de forma pouco sistemática, eu lia despreocupadamente a monja budista Kankyo Tannier. No livro ‘Em busca do tempo presente’, ela tece algumas reflexões críticas sobre certas práticas de espiritualidade voltadas unicamente para os âmbitos internos do ser, que tendem a levar ou para o fechamento ao mundo externo (afinal, o desenvolvimento espiritual é visto como uma dimensão a ser perseguida de forma interior) ou para uma “hiperpsicologização”, em que qualquer acontecimento da vida se torna objeto de análise e racionalização. No fim das contas, uma espiritualidade que pode perder de vista as dimensões do sentir não racional e da conexão com as outras pessoas.

Em algum momento, a autora diz: “Não há o que duvidar: para avançar pela via espiritual, eu preciso de um corpo. Mais do que isso, é preciso habitá-lo efetivamente dos pés à cabeça, com plena consciência. Porque, se a transcendência passa pelo instante presente, o instante presente é o corpo. Se eu sair buscando além, corro o imenso risco de criar mentalmente uma nova ideia de espiritualidade, um mero conceito, um reino imaginário, por certo muito atraente, mas totalmente fictício”.

Essa passagem simples me arrebatou e me fez pensar imediatamente na carta do Diabo. Em como ela pode ser vista não apenas como um alerta sobre nos perdermos nos prazeres terrenos, mas também um convite para enxergarmos, nesses prazeres, formas de conexão transcendentes. Se é através do mundo dos sentidos que conseguimos sentir a vida corporificada e vibrante em nós, essas sensações são também sagradas, pois elas nos conectam com nós mesmos/as, com as outras pessoas e com o mundo ao redor. Elas produzem laços e significados. Os sentidos físicos nos ligam ao presente e, ao fazer isso, possibilitam uma vivência mais plena, ancorada no agora, e não perdida na lamentação do que já foi ou na preocupação do que ainda não é.

Talvez o Diabo nos lembre que a espiritualidade precisa ser sentida. Que os conceitos, reflexões e ensinamentos – e aqui ele dá uma piscadela para o Hierofante/Papa – são imprescindíveis para a transformação das paisagens mentais com as quais enxergamos o mundo e a vida; mas que a busca espiritual implica também abrir-se para aquelas dimensões da existência não passíveis de ser entendidas racionalmente, mas apenas vivenciadas, sentidas no corpo e nas experiências que ele permite. Ao repetir o gesto hermético do Mago, talvez o Diabo esteja nos alertando que a distinção espiritual/material, divino/terreno, é ela própria a armadilha capaz de nos aprisionar numa vida sem sentido, sem prazeres, sem realizações.

Com o Diabo, o corpo e a vida sensível que ele permite – na exploração do mundo e de nós mesmos/as – são também fontes de sentido para a existência. A carta nos lembra o quanto a realidade material é importante para nos enxergarmos enquanto seres, e como ela pode ser fonte de satisfação e de prazer se enxergada numa perspectiva transcendente. O corpo nos aterra ao mundo dos sentidos e, nesse processo, nos vincula com toda a vida ao nosso redor. É através dele que sentimos a vida em nós.

A astróloga e taróloga Lu Lentz escreveu recentemente (em seu perfil no Instagram @meiodaterra): “Para nos conectarmos com a matéria precisamos nos conectar também com a não-matéria, e vice-versa. O corpo é uma ferramenta e um meio de possibilidades de prazer, e também uma tradução do invisível. Sentir no corpo o que percebemos da vida, trazer para a superfície o que fica muitas vezes perdido na inconsciência. Eu me transformo quando dou forma aquilo que preciso. Eu habito meu próprio corpo quando materializo o resultado das conexões que faço através dele”.

Se feito esse trabalho, a dimensão material da vida não mais passa como uma contradição com a dimensão espiritual. O corpo e os prazeres são enxergados também como uma forma de conexão genuína com o mundo. A dualidade corpo/espírito não mais existe; o que temos é um todo integrado. Não há mais aprisionamento, mas sim abertura para que o material seja transcendentalizado, e o transcendente materializado. Que essa perspectiva no tarô possa ser lida justamente na carta do Diabo – figura esta para a qual os padrões culturais mais generalizados praticamente não reservam qualificativos positivos – é um fato, no mínimo, curioso, e poderia nos incentivar a olhar de modo diferente para o corpo e os prazeres na sua relação com as buscas espirituais.

 

*Aristeu Portela Jr. é tarólogo, pesquisador e professor. Integra a Carcará – Escola de Tarot, e atua com o tarô como ferramenta de auto investigação e transformação.

Fone / WhatsApp: (81) 996093294
Instagram: @aristeuportela

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