Fique por dentro das novidades do Flores no Ar!

Arquivos

Flores no Ar Logotipo do Portal Flores no Ar

[CAIXA DE PANDORA] Eu (também) imigrante: entre encontros

Por Juliana Florencio* |

Juliana Florencio é psicóloga e arteterapeuta.

Neste texto eu gostaria de falar um pouco sobre a minha experiência como imigrante.

Há três anos eu me mudei para a Alemanha. Eu vim por motivos do coração… “aus Liebe”… “por amor”, como se diz aqui, pois me casei com um alemão.

Mas, o que gostaria de trazer neste texto são os desafios de integração social e de inserção na sociedade através do trabalho. O trabalho sempre foi uma parte muito importante da minha vida, não apenas como fonte de sobrevivência, de realização material e autonomia, mas também como promotor de satisfação e sentidos.

Eu amo minha profissão. Eu amo ser psicóloga clínica. E isso tem sido o maior motivador e, ao mesmo tempo, o maior desafio para minha integração. Quando soube que conseguiria atuar na área, fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo apreensiva, pois psicologia exige um alemão fluente… e é aí que começa essa jornada .

Comecei o curso de idioma do zero e no começo tudo é lucro. Quando se dá os primeiros passos, é como se se abrisse um novo mundo.

Ao final do nível básico (B1) existe uma prova que é necessária para a maioria dos estrangeiros continuarem aqui. Ufa! Passei! Mas isso era só o começo da jornada. Para atuar na minha área precisaria no mínimo do C1 (nível universitário), mas o ideal mesmo é o C2 (nível nativo). Então segui o caminho, embora esse horizonte parecesse inatingível.

À medida que se avança, as exigências no cotidiano ficam maiores. Mudei do inglês do dia-a-dia para o alemão. Esse passo foi decisivo para minha imersão aqui, mas ao mesmo tempo tive que me permitir ser vulnerável. E isso não foi fácil. Parecia que eu estava abrindo mão do que eu tinha construído na minha vida para começar de novo.

A sensação de ser uma mulher adulta que não consegue se expressar é muito desagradável. Eu sentia muita vergonha. Muitas vezes evitei de encontrar pessoas para não ficar me sentindo mal, porque não conseguia falar…

Pra piorar, o curso avançava e eu pensava “vou terminar o C2 e ainda não vou conseguir falar”. Isso me trazia muita angústia, mas a possibilidade de trabalhar aqui me fazia continuar.

Posso dizer que isso foi uma crise na minha vida que me impeliu a me redescobrir de outras maneiras. Eu entrei numa fase de maior introversão e me descobri por outra perspectiva.

Quem eu era sem meu histórico profissional? Sem um lugar estabelecido nesta nova sociedade? O que eu queria mesmo pra minha vida? O que é mesmo importante? O que eu precisaria abandonar?

Uma coisa era certa: Eu precisaria abandonar uma ideia que eu tinha de mim mesma para poder recomeçar profissionalmente aqui.

Em maio de 2020 chegaria o fim do curso de alemão, mas a pandemia já havia mostrado a que veio. Eu tinha planejado fazer um estágio ou trabalho voluntário em alguma organização para praticar a língua enquanto esperava o documento de validação do diploma e das minhas experiências no Brasil. Devido ao Corona, os planos não deram certo. Continuei estudando em casa, fazendo meus atendimentos on-line e esperando os papéis do reconhecimento. Foi um tempo de espera e horizontes nebulosos… não só para mim, mas para todo mundo.

Bem, terminei todo o curso. O esforço valeu a pena! Mas eu ainda não era fluente, o que me deixava muito angustiada.

No começo deste ano algo bem importante aconteceu em mim: entendi que a comunicação era o mais importante. Parece óbvio, não é? Racionalmente é evidente, mas essa compreensão, desta vez, revelou-se de um lugar que não era a minha cabeça, mas sim do meu coração.

Então comecei a focar na comunicação e não na gramática.

Esse insight me encheu de coragem e assim fui para minha primeira entrevista de emprego.

Fui contratada!

Eu ainda tenho minhas dificuldades com a língua e às vezes bate aquela chateação com meus erros, ou quando não consigo me expressar como gostaria. Mas uma coisa que aprendi é rir de mim mesma.

Ultimamente tenho rido muito do que eu chamo “mein besonderes Deutsch” – “meu alemão especial”. Sim! Eu vou ser sempre estrangeira e nunca vou falar como uma pessoa que nasceu aqui. Isso não é defeito, essa é a minha trajetória.

Tenho percebido que meus erros gramaticais não são tão importantes… O importante é o encontro. O importante é o que surge, se transforma e frutifica a partir do encontro entre pessoas.

E eu posso errar sim! Esse é um exercício de auto-acolhimento, paciência comigo mesma e auto-aceitação.

Tenho vivenciado com mais intensidade e de uma forma mais ampla esses dois aspectos: a importância da persistência e dos pequenos passos cotidianos (continuo aprendendo alemão); e a dinâmica dos encontros. Encontros de verdade acontecem simultaneamente em vários níveis… do verbal ao não verbal, da intenção ao afeto… e, talvez, em outras esferas que não tenhamos conhecimentos.

Na minha prática clínica um encontro pode acontecer em português, alemão ou também com intérpretes – trabalho com pessoas refugiadas e muitas vezes conto com esses profissionais. O encontro pode ocorrer também através dos recursos expressivos, na arteterapia; da movimentação e criação de imagens através do Sandplay; e através do trabalho com o corpo.

Assim como no Setting terapêutico, também acontecem os demais encontros da vida. Estes não dependem só de mim, ou só do outro, pois um encontro não é a soma dos envolvidos, é algo único que acontece e tem vida própria. Um encontro de verdade é um exercício que nos chama para abertura, disponibilidade e aceitação… em outras palavras, um encontro pede para estarmos presentes, no aqui e no agora, do jeito que somos, com o que temos, disponíveis a interagir e, quem sabe, ou quem dera, nos transformar.

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
Email: juflorenciocs@gmail.com

 

Leave a comment