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[CAIXA DE PANDORA] Cuidar de Casa

Por Juliana Florencio* |

A questão do trabalho doméstico sempre me inquietou, mas desde que, recentemente, voltei de uma temporada na Alemanha, comecei a ter mais clareza sobre a importância deste assunto.

Nos países ditos desenvolvidos não ocorre o que acontece aqui no Brasil nas classes economicamente mais favorecidas: a terceirização do lidar com a vida cotidiana – inclusive o cuidado com as crianças.

Tenho percebido que venho de uma geração em que as mães tentaram nos poupar do “trabalho de casa”, com o discurso de que deveríamos focar nos estudos, a prioridade deveria ser esta. Isto tem algumas consequências importantes: uma delas é a sobrecarga das mães, com suas injustas triplas jornadas de trabalho; outra, é uma espécie de infantilização, no sentido, de que o indivíduo não aprende, não adquire habilidades para lidar com coisas muito básicas da vida, como limpar a casa, mantê-la organizada, cozinhar, lavar roupas, ter uma rotina doméstica…

Sabemos que muito disso se deve à desvalorização do que é atribuído ao feminino. O cuidar da casa sempre foi basicamente uma função feminina e isso a relega a uma categoria inferior, de não importância. Existe um ditado que diz que o trabalho doméstico é invisível até que deixe de ser feito. E como isso é real!

Provavelmente nossas mães tenham tentado nos poupar dessa invisibilidade e menos valia. Acharam que a solução seria o foco nos estudos e no mercado de trabalho – que ancestralmente fazem parte do universo masculino, dessa forma, valorizados.

Esse rebaixamento de importância dos cuidados domésticos embaçam o real lugar que este aspecto tem em nossas vidas. A casa é a continuação do nosso corpo, é a morada da nossa existência, é onde nossa intimidade é vivida… e isso tem sido relegado, desvalorizado e … terceirizado.

Esta terceirização é experenciada como sinal de status, privilégio.

Alia-se à desvalorização do feminino, um forte componente escravocata que, infelizmente, a abolição não tirou do nosso “DNA cultural”. A mentalidade brasileira divide as pessoas em dois tipos: os poucos que fazem parte da casa grande e os muitos da senzala.

Ora, os senhores e senhoras não cuidavam de suas casas… grandes… nem das suas crianças, as escravas sim, que além da sua família, tinham que cuidar da família dos brancos. Ora, isso pouco mudou no Brasil, essa mentalidade continua a existir e forte.

Machismo e cultura de privilégios: que trágica combinação.

Poderíamos pensar que é trágico apenas para as mulheres e para as/os trabalhadoras/es que prestam este tipo de serviço (empregadas domésticas, babás, faxineiras, serviços gerais, porteiros, zeladores etc etc.) e sim a carga sobre estes é muito mais pesada e passa por desvalorizações desde remuneração até morais. Mas, estas questões atingem a todos. Uma parte fica sobrecarregada e diminuída em sua importância e a outra alienada de uma experiência vital: cuidar da casa é cuidar de si. Este duo de não-cuidado/terceirização tem impactos importantes sobre a vida prática e psíquica.

Como cantaria Caetano “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial…”. Vemos uma classe média mergulhada numa luta diária, muitas vezes exasperante, para a manutenção dessa cultura de privilégios. Ora, deve ter alguma coisa muito disfuncional quando uma família não pode dar conta de suas próprias necessidades de auto-cuidado, necessitando, como única via, desta terceirização.

Não estou dizendo que contar com este tipo de trabalho seja errado. Não é isso! Questiono a manutenção de um ideal de estilo de vida que leva pessoas a serem reféns do capitalismo sem a mínima reflexão.

Poderíamos achar que seria aprisionante apenas para as empregadas domésticas, por exemplo, mas não é, acaba sendo para todos.

A luta pela manutenção de uma cultura de privilégios, além de injusta, pode ser exaustiva.

Vivi uma experência na Alemanha que me levou a refletir bastante e de forma bem prática: fui fazer a faxina na casa e utilizei um equipamento que me deixou fascinada… era só um esfregão! Mas este objeto facilitava tanto a limpeza que fiquei pensando em como aqui no Brasil não investimos em soluções para lidar com este ranço de tortura e desprezo em relação ao trabalho doméstico. Como as/os faxineiras/os, e nós mesmas/os, estamos submetidas/os ao mesmo tipo de esforço de 500 anos atrás… Como este tipo de cuidado é invisível e renegado!

Para concluir minha reflexão, gostaria de citar a frase de Jung que penso que se encaixa bem a este questionamento sobre a manutenção do machismo e da cultura de privilégios: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.”

* Juliana Florencio é psicóloga, arteterapeuta e terapeuta do Jogo da Areia (em formação). Atualmente mora na região de Stuttgart, Alemanha, onde realiza seus atendimentos.
Email: juflorenciocs@gmail.com

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